terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Great Smoky Mountains

Pra quem conhece Yosemite Park (na California), The Great Smoky Mountains não são lá uma Brastemp. Os bosques e trilhas do parque nacional (na divisa entre Tenessee e Carolina do Norte) são bonitos, mas falta a exuberância das águas e árvores, além do relevo pedregoso que confere imponência a outros santuários americanos. O adjetivo “smoky” vem da constante bruma nas áreas mais altas, compondo um ecossistema antigo, com espécies raras da flora e da fauna. Tudo bem que a presença da neblina dê um toque misterioso às montanhas, mas achei providencial que ela só tenha aparecido para nós por poucas horas da manhã, favorecendo bastante a visibilidade nos principais pontos turísticos.
Apesar de, em um dia de passeio, não termos exclamado muitos Ohs! e Uaus!, testemunhamos a boa organização do lugar. Há centros de visitantes com funcionários solícitos em diferentes áreas; não faltam jornais, mapas e guias informativos; guardas florestais cuidam dos locais mais movimentados, instruindo as pessoas e zelando pela segurança do ambiente. Quando estávamos subindo a trilha para Clingmans Dome, o ponto mais alto nos “Smokies”, ouvimos um zumbido forte e constante. Pensei serem as abelhas que voavam por ali, mas logo alguém reconheceu o som: “é um drone!” A palavra, e o zumbido, despertaram os mais primitivos instintos de proteção no guarda que conversava a nossa frente. Com sangue nos olhos, subiu a trilha aos pulos, em direção ao infame invasor. Sem conseguir acompanhá-lo na subida, imaginei que, chegando ao topo, encontraria o dono do drone algemado e imobilizado, o equipamento aos pedaços a seus pés. Os poucos minutos de corrida ladeira acima devem ter trazido o policial à razão, pois, ao invés da cena imaginada, encontrei-o recomposto, explicando pacientemente a um rapaz os malefícios do veículo voador para a fauna local. Meio a contragosto, o jovem recolheu seu brinquedinho e a paz voltou a reinar entre os animais, e entre os guardas florestais.


O principal habitante do parque, no entanto, é bem mais difícil de encontrar do que as abelhas. Embora 1.500 ursos negros vivam na reserva ecológica (segundo o Smokies Guide), só conseguimos ver um deles de relance, bem de relance mesmo, na área eleita por nós como a mais bonita: Cades Cove. O vale ensolarado e tranquilo tocou fundo o coração de Ana Paula, fascinada com os tons do céu em composição com o verde da pradaria. Enquanto escolhia os ângulos para fotografar cada detalhe, não se cansava de dizer o quanto estava feliz. Talvez em outras vidas tenha estado por lá, talvez relembrasse as cores e sons de um campo ancestral, ou antevisse um tempo futuro... O fato é que a estradinha em loop de Cades Cove, com veados e ursos, além de casas e igrejas rústicas dos primeiros moradores dos Apalaches, fechou com emoção e simplicidade nosso único dia na região.
Consultando o material de divulgação, encontramos muitas atividades bacanas para quem fica uma estadia mais longa: pesca, camping, passeios a cavalo e de bicicleta, observação de animais, passeio à aldeia Cherokee, além de cursos com especialistas de Ciências, História e Artes. Esta variedade de possibilidades deve ser um dos motivos que tornam The Great Smoky Mountains o parque mais visitado do país. Mas eu aposto que a proximidade a duas cidades pitorescas contribui bastante para atrair a enxurrada de interessados. Numa das principais entradas da reserva está Gatlinburg, um conglomerado de hotéis, restaurantes de grandes redes, cervejarias, parques de diversão, pistas de Kart, teleférico e milhares de lojinhas de souvenir. À noite, a rua principal (e quase única da pequena localidade) ferve com as famílias divertindo-se aqui e ali. 
Esgotadas as possibilidades em Gatlinburg, basta dirigir por uns 20 minutos e encontrar a cidade mais desvairada que já conheci - Pigeon Forge, uma mistura de Disneylândia com Las Vegas, às margens de uma longa avenida. Os estabelecimentos, letreiros luminosos piscando para capturar a atenção dos passantes, fazem referência ao cinema de Hollywood (King Kong, Titanic) e aos mitos americanos como Elvis, Marilyn e John Wayne. E ainda oferecerem experiências temáticas com os caipiras da família Buscapé ou numa casa-brinquedo simulando a ação de um tornado. As excentricidades de Pigeon Forge estão longe do nosso gosto turístico, mas não deixamos de parar o carro para fotografar, e rir muito, a cada surpresa no caminho. Mais fotos da aventura podem ser acessadas no link no final da postagem. Vale a diversão!

Para ver outras imagens, clique aqui: Galeria de Fotos - Great Smoky Mountains
Para saber mais sobre a viagem, leia também: Entre Luz e SombraChattanooga Choo-Choo; Alegria e Música em Nashville e Enfim, o Eclipse.

domingo, 19 de novembro de 2017

Enfim, o Eclipse

Ainda era cedo naquela segunda-feira de agosto - dez da manhã, se tanto. Havíamos saído de Nashville com antecedência, movidos por uma soma de ansiedades – a nossa, trazida desde o Brasil, e a que piscava incessantemente nos painéis luminosos espalhados pela cidade, avisando sobre prováveis engarrafamentos no dia do eclipse.

A viagem de quarenta minutos até a cidadezinha de Gallatin, tantas vezes ensaiada no Google Maps, durou, vejam só, exatos quarenta minutos. E não foi difícil encontrar um lugar para parar o carro, apesar dos pontos oficiais de estacionamento no parque já estarem tomados por americanos ainda mais precavidos. Orientados pelo pessoal do evento, estacionamos num grande descampado gramado, no qual as fileiras de automóveis iam rapidamente se formando. De posse de nossas modestas tralhas (três cangas, garrafinhas de água mineral e algumas frutas), seguimos a pé até o ponto central do Triple Creek Park, acompanhando as famílias que levavam seus incríveis equipamentos de camping – cadeiras e mesinhas dobráveis; geladeiras com rodinhas; tendas tamanho XGG, entre outros apetrechos considerados totalmente indispensáveis para um dia ao ar livre.

Enquanto caminhávamos, fomos percebendo que o parque, que nos parecera, em visitas pelo Street View, um local ermo e sem atrativos, tinha sido transformado para receber os visitantes. Voluntários davam as boas vindas, distribuíam informativos sobre as atrações do encontro e ofereciam óculos especiais para a observação do eclipse. Reforçamos o estoque de água mineral, distribuída gratuitamente, localizamos a área de banheiros químicos e nos instalamos à sombra de uma fileira de árvores, nossas canguinhas estiradas providencialmente no gramado.
As duas horas de espera até que o eclipse começasse passaram aos pulos, no ritmo da nossa felicidade. Eu não esperava me sentir tão envolvida, mas o clima alegre das pessoas ao nosso redor, a música (James Taylor, Bob Dylan e afins) ao vivo no palco, o céu praticamente sem nuvens, a organização e o cuidado com os detalhes do encontro, foram me fazendo dar graças por poder estar ali. E o Mário, sorriso brilhando, andando de lá pra cá no meio de lunetas e telescópios poderosos, falando com gente apaixonada por astronomia, vinda, de perto e de longe, para ver o espetáculo do dia.

Depois que a lua começou a sombrear o sol, não arredamos mais pé do nosso ponto de observação. Olhos colados no céu, acompanhamos as mudanças na natureza e a reação das pessoas:
 - Não tira os óculos, pode cegar! - Acho que a sombra já está na metade, vê só! - Tá ficando mais fresco, né?- Pode me emprestar o seu binóculo? - De onde vocês são? ... Brasil! Tão longe!


Escureceu quando o eclipse total se desenhou, e ouviram-se palmas e cigarras cantando, e vozes em alvoroço. Olhos livres e corajosos, assim como as câmeras fotográficas, procuravam capturar os 2 minutos e 40 segundos de círculo negro. Foi uma beleza o clarão que anunciou o final da sobreposição perfeita! Lua e sol se despediram, e continuaram em seus caminhos plenos de luz, assim como nós. 
No retorno para o estacionamento, seguimos as famílias que, além da emoção e dos equipamentos de camping, levavam também o lixo que produziram. Ao fim da tarde, deixamos o parque lá atrás, de volta à sua essência: um local ermo e sem atrativos, mas, definitivamente, o mais marcante da nossa viagem.



Para ver outras imagens, clique em Galeria de Fotos - Eclipse
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Na Rede:
  • Eclipse MegaMovie Project - promovido por uma associação entre a Astronomical Society of the Pacific, a Universidade da Califórnia em Berkeley e o Google. O objetivo do projeto foi produzir um vídeo a partir de imagens coletadas por fotógrafos voluntários ao longo do caminho do eclipse. O resultado, que inclui uma foto feita pelo Mario 😊😊, pode ser visto em https://eclipsemega.movie/
  • Dentre os vários vídeos produzidos durante o The Gallatin Eclipse Encounter, selecionei este que, apesar de não ter boa resolução nas imagens do eclipse propriamente dito, mostra bem a reação emocionada das pessoas no parque na hora H.  https://youtu.be/4IXg3aPLHaw

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Alegria e Música em Nashville

Nashville estava em festa naqueles dias que antecederam o eclipse. O forte calor do mês de agosto impulsionava a multidão para as ruas. No centro da cidade, quarteirões em torno da Broadway fervilhavam de moradores e forasteiros. Em meio aos espigões plantados próximos ao rio Cumberland, prédios baixos, com seus tijolinhos aparentes, enfeitavam o ir e vir humano. Letreiros luminosos nas fachadas e terraços decorados complementavam o clima de alegria e liberdade. 

A presença ostensiva de policiais e as grades protetoras nas calçadas destoavam um pouco do astral relaxado. Os guardas talvez pensassem em tiroteios ou atentados – o que agora, depois dos episódios de Las Vegas e Nova York, parece bem pertinente - mas toda aquela gente estava decidida a se divertir em segurança. Famílias em seus últimos dias de férias escolares circulavam por lojas, restaurantes e sorveterias, desfilando os pares de botas e os chapéus recém-comprados. Jovens acotovelavam-se nas portas dos bares aguardando o próximo show ao vivo. Turistas embarcavam para um passeio nos mais variados veículos: carruagens e charretes, ônibus temáticos, além de inusitados bares ambulantes impulsionados pelas pedaladas dos consumidores, enquanto, é claro, estes estivessem sóbrios para dar conta do esforço.
Em meio ao alvoroço, grupos de moças uniformizadas chamavam a atenção. Inúmeras noivas e suas amigas comemoravam despedidas de solteira, e andavam de bar em bar, entre animadas e eufóricas. Pela quantidade de turmas diferentes, pelas risadas e cochichos, logo imaginamos uma Convenção Estadual de Noivas Nervosas acontecendo em Nashville naqueles dias. ;)
Para completar a agitação do centro turístico, as ruas ficaram coalhadas de camisas azuis e brancas, as cores do Tennessee Titans, time de futebol americano que acabara de vencer, em casa, uma partida preparatória para a temporada.

O eclipse, as férias escolares, o amor e o futebol tiveram lá o seu quinhão de importância no fervilhar da cidade naqueles dias. Mas estávamos em Nashville, the Music City!! A força da música, principalmente da country music, se faz presente em cada canto, atraindo artistas (os famosos e os em busca da fama) e o grande público. Visitamos o emblemático Ryman Auditorium, um teatro que nasceu como igreja em 1892 e ainda mantém a arquitetura e os bancos corridos típicos de um templo religioso. Nas primeiras décadas do século XX, já unicamente como casa de shows, o Ryman foi gerenciado por uma mulher (Viva!), uma das raras empresárias da época. A fama do teatro, nacionalmente conhecido como “Mother Church of Contry Music”, é atribuída ao trabalho competente e visionário de Mrs Naff. Tudo isso é contado num vídeo super bem feito que, por ter imagens projetadas nas 4 paredes da sala de apresentação, acaba fazendo com que os espectadores se sintam parte dos fatos narrados.
Por fim, enfrentamos uma fila quilométrica pra conhecer o Country Music Hall of Fame, um museu sobre a história dos diferentes gêneros da música country. As bem montadas exposições reúnem arquivos sonoros, fotografias e vídeos, painéis e objetos de gerações de intérpretes e compositores, de Willie Nelson, Dolly Parton e Johnny Cash a Carrie Underwood e Blake Shelton. A última sala do tour é o Hall da Fama propriamente dito, adornado com as placas dos artistas que receberam a honraria pelo sucesso de vendas dos seus discos.

Todos estes momentos em Nashville alegraram a nossa viagem, mas, para mim, o ponto alto foi o show The Grand Ole Opry, um programa de rádio que é transmitido desde 1925 e reúne, em cada apresentação, vários artistas do sertanejo americano. O show tem um locutor, um senhor elegante, com voz empostada (e muito engraçada), que lê os anúncios dos patrocinadores. Alguns dos intérpretes da noite se revezam na recepção aos colegas e na condução do programa, oferecendo à plateia um repertório bem diversificado - ótimo para quem não é expert no gênero, como era o nosso caso. Nós ouvimos canções românticas, números instrumentais e até um conjunto bem tradicional (Riders In The Sky), com velhinhos vestindo ternos bordados e cantando músicas em homenagem aos seus cavalos. Eles foram um espetáculo à parte, reforçando o tom folclórico e o humor, capturando a atenção do teatro lotado. 
Um dos convidados, no entanto, passou a fazer parte da minha playlist. Vira e mexe abro o YouTube pra ouvir Flatt Lonesome, uma banda de irmãos que capricha nos vocais e na performance dos instrumentos. Quer ouvir?  É só clicar no link lá embaixo Na Rede, e sair cantando - You’re the one, you’re the one...




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Para saber mais sobre a viagem, leia também: Entre Luz e Sombra; Chattanooga Choo-ChooEnfim, o Eclipse e Great Smoky Mountains
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Na Rede:

domingo, 22 de outubro de 2017

Chattanooga Choo-Choo

De Atlanta a Chattanooga são 2 horas de viagem pela Interstate 75, uma rodovia larga, com muitas faixas de rolagem (em alguns trechos são 6 faixas, mas nunca menos de 3), asfalto bem cuidado e, maravilha!, sem cobrança de pedágio - fato raro em outros estados. Uma fileira de árvores se alinha às suas margens, o que deixa o trajeto bem mais agradável e fresco, mas, imagino, que este anteparo verde também seja importante como proteção acústica para os moradores das redondezas.

As ótimas condições da estrada garantem a segurança de todos e ajudam a escoar o pesado tráfego de caminhões. É impressionante a quantidade de imensos, e lindos, veículos circulando: cabines com design arrojado, cores vibrantes, carrocerias adaptadas às mais variadas mercadorias. O fenômeno da onipresença dos caminhões se repetiu em todas as rodovias em que transitamos, uma demonstração da importância do transporte sobre rodas para a economia do país.
Já se vão décadas em que é possível chegar rapidamente a Chattanooga de automóvel, mas, no final do século 19, a cidade fez parte de um importante eixo ferroviário, ligando o norte ao sul do país. O primeiro trem de passageiros a circular no caminho de ferro foi apelidado de Chattanooga Choo-Choo, numa alusão ao nome da cidade e ao apito da Maria Fumaça. A antiga estação, reformada, virou ponto turístico, com museu, hotel e casa de shows. Quem quiser uma hospedagem temática pode reservar uma suíte em um dos vagões estacionados nas plataformas.
Como preferimos os B&B, escolhemos uma pousada nas montanhas que ladeiam a cidade. Além de ser um lugar lindo - com bosques, casas incríveis (morro de inveja das casas americanas) e caminhos bucólicos - Lookout Mountain reúne algumas das principais atrações da região. 
Fomos a pé do Chanticleer Inn (nosso hotelzinho) a Rock City – um parque pedregoso, com trilhas, vegetação natural e belas vistas do vale de Chattanooga. Não chega a ser uma cidade de pedras, como o nome sugere, mas os proprietários valorizaram a experiência incrementando os espaços com sinalização e informação adequadas, e criando um clima especial para cada canto visitado. Fadas, gnomos e bandeiras, além de veadinhos e pássaros, coabitam no parque, num tom meio kitsch, mas divertido

Outra atração da nossa vizinhança é o The Incline, um plano muuuito inclinado em que dois vagões puxados por cabos, num sistema de peso e contrapeso, fazem o percurso da base ao cume da montanha. Os últimos metros da subida trazem emoção à viagem tal a posição quase vertical do terreno. É até difícil ficar de pé e sair do vagão no ponto de desembarque. A estação é pequenina, mas, enquanto esperávamos a hora da volta, visitamos a casa de máquinas e acompanhamos a história do local por uma exposição fotográfica.
O passeio que mais fez sucesso na família, no entanto, foi a visita a Ruby Falls – uma cachoeira subterrânea, a 340 metros de profundidade. Mais uma vez constatei o tino dos americanos para os negócios. Um elevador leva confortavelmente os visitantes às profundezas, os guias são afiados nas informações sobre os pioneiros na descoberta das cavernas, luzes coloridas destacam as formações nas rochas ao longo do percurso e ainda tem a performance do “grand finale”. Após um suspense no escuro dentro de uma das cavernas, luzes são acesas e ooh!! é possível ver a bela queda d’água.
Descendo o morro, chegamos à área urbana, espalhada em torno das curvas do rio Tennessee. Em cartazes distribuídos pelo centro, se lê: City of Chattanooga: Clean, Green & Pet Friendly! Pelo que vimos, não é propaganda enganosa – há estímulo ao uso de bicicletas e carros elétricos; as regras para os proprietários de animais de estimação são bem definidas; tem muita gente jovem se exercitando nas ruas (apesar do calor infernal que fazia na tarde em que caminhamos por lá). Museus, galerias e centros de cultura estão reunidos em um bairro inteirinho voltado para as artes, e ainda encontramos restaurantes e bares aos montes.
Antes da viagem, pelo que pesquisei, eu já esperava gostar da cidade, mas, conhecendo a região, ao vivo e a cores, eu simplesmente adorei! 
Deu vontade de ficar por lá! Dá vontade de voltar! Um dia, talvez, quem sabe?!

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Para saber mais sobre a viagem, leia também: Entre Luz e Sombra;
Alegria e Música em NashvilleEnfim, o Eclipse e Great Smoky Mountains
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Na Rede:
  • Chattanooga Choo-Choo é também o nome de uma canção sobre uma viagem de trem. Gravada pela orquestra de Glenn Miller para o filme Sun Valley Serenade, fez muito sucesso na década de 1940. O link abaixo mostra a cena do musical, com direito a show da Big Band e incrível número de sapateado.  https://www.youtube.com/watch?v=V2aj0zhXlLA
  • E tem também a versão da música em português no filme Springtime in the Rockies, interpretada por Carmem Mirandahttps://www.youtube.com/watch?v=d56jNWozP6k

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Nós e as Crianças

Aqui dentro, estamos a salvo. A maldade só existe lá fora e, se ela vier, terá que bater à nossa porta. Para nos proteger, basta cuidar das entradas, do entorno, das fronteiras. Redobramos a atenção no portão, suspendemos o muro, convocamos a presença da patrulhinha; afinal o bairro anda tão violento ultimamente. Um conjunto de câmeras de vigilância já foi encomendado, mas ainda não ficou decidido se os passeios serão suspensos. Será uma boa ideia circularmos, nós e as crianças, no mundo da maldade que existe lá fora?

Melhor ficarmos no interior desta casa. Aqui reina a força de vida, um ciclo dinâmico e complementar de risos e choros, acertos e discórdias, afeto e crescimento. Convivendo dia a dia, nos olhamos nos olhos, nós e as crianças. O desejo de morte só viria de quem não nos conhece. Quem já nos olhou nos olhos, há de nos querer o bem. 

E seguimos crédulos e confiantes. Somos fortes e temos nosso quinhão de felicidade, nós e as crianças. Aqui dentro, estamos a salvo. Estamos? Estávamos! Até outro dia, quando a lógica se quebrou. A morte premeditada encontrou lugar nas entranhas de num espaço tão igual ao nosso, pelas mãos de quem se sabia o nome, e se reconhecia a face. Fogo e dor ao norte de Minas Gerais. Aqui, onde estávamos a salvo, cresce o espanto e morre a ilusão, escancaram-se os limites protetores. O que será de nós e das crianças?

Ilustração - Crianças Brincando - Portinari - 1960

terça-feira, 3 de outubro de 2017

Tiros em Las Vegas

Para dar continuidade aos relatos de viagem, que prometi na publicação passada, este texto deveria ser sobre Chattanooga, a primeira cidade visitada no Tennessee. Mas, de repente, sem nenhum aviso, a realidade se sobrepôs ao meu desejo. Acordei ontem com a notícia do atentado em Las Vegas durante um show de música country: 59 mortos e mais de 500 feridos!

As imagens divulgadas na tevê me impressionaram pela desproporção do poder do atirador – protegido no alto do prédio e com armamento pesado – em relação à posição indefesa do público, usufruindo do momento em campo aberto. Correria, caos, medo e morte em mais um massacre nos Estados Unidos. Como nos eventos anteriores, em que pessoas foram atingidas em atividades cotidianas, e diante da impossibilidade de compreender a lógica (ou loucura) dos matadores, voltou com força o debate sobre o controle da venda de armas no país.

A salvo na minha sala de estar, fiquei me perguntando se, para se defender, como prevê a constituição e desejam muitos americanos, a população civil precisa de fuzis e metralhadoras de alto poder letal que, nestes massacres, têm sido usados justamente contra a tão almejada segurança individual. 

Ao mesmo tempo, tentei me lembrar de momentos da viagem em que tivéssemos esbarrado na cultura das armas, em sinais do apreço do povo por revólveres e afins. Concluí que só em duas situações nos deparamos com o tema, mas pela via da restrição ao uso. Tanto na visita guiada à destilaria Jack Daniel, quanto no teatro Grand Ole Opry, fomos avisados que armas não seriam aceitas no interior dos estabelecimentos. Isso apesar da viagem ter se concentrado no sul do país, região tradicionalmente mais conservadora e republicana. Tennessee, Carolina do Sul e Geórgia elegeram Trump com margem folgada de votos.

É claro que uma estada curta, como turista, não me faz uma expert na sociedade americana, só me credencia a falar a partir do meu ponto de vista, uma abordagem parcial e intransferível. Feita a ressalva, digo que esta foi uma das viagens em que me senti mais segura e tranquila ao circular por ruas, parques, casas de shows e bares, de dia ou à noite. Não vi ninguém portando armas, não ouvi tiros nas ruas, nem discussões ou nervos à flor da pele. Ao contrário, a população usufrui de espaços públicos com gentileza e organização, as casas são ajardinadas, sem grades ou muros, e as mochilas circulam tranquilamente nas costas de seus donos. No dia do eclipse, no parque repleto de espectadores de todo o país, ninguém parecia preocupado com seus pertences ou com os equipamentos (binóculos, máquinas fotográficas, telescópios) caríssimos. Uma paz invejável!

Paz que também me invadiu quando, já anoitecendo no Centennial Park, em Nashville, encontramos um senhor tocando o seu instrumento à beira do lago. O som do violoncelo transformou-se, para mim, na trilha sonora da alegria de viver. Torço para que, mesmo diante da maldade e da morte, o povo americano (re)encontre o seu hino de esperança e felicidade.

terça-feira, 26 de setembro de 2017

Entre Luz e Sombra

No início do ano, eu e Mario nos convencemos que não dava pra perder a oportunidade. Em território brasileiro, a chance só viria em 2045, quando eu, com muita, muita sorte, estaria completando 85 anos! Se não fosse em 2017, talvez não tivéssemos mais disposição, ou saúde, ou os dólares necessários, para sair pelo mundo caçando a combinação perfeita entre luz e sombra. Ainda havia tempo para planejar a viagem e estar, no dia 21 de agosto, no local e hora exatos para apreciar um fenômeno pouco comum: olhar para o céu e ver a lua eclipsar totalmente a luz do sol – um deleite para quem se interessa por astronomia e fotografia, como o Mário, que, por tabela, me ensinou a gostar também. Foi, portanto, a sombra da lua em seu trânsito pela Terra que orientou nossas escolhas e resultou nesse roteiro original para brasileiros visitando os Estados Unidos.
Coube ao Mario selecionar, dentre os melhores locais de observação (eclipse total com mais tempo de duração), aqueles que também tivessem algum potencial turístico. Ele mergulhou na infinidade de conteúdo produzido sobre o eclipse – publicações de institutos científicos, guias astronômicos, dicas fotográficas, divulgação de eventos, diários de viajantes – e, por fim, ficou decidido que nossa base astronômica seria Nashville – um eclipse em ritmo de musica country. A escolha se mostrou perfeita logo que descobrimos que as férias da faculdade de Ana Paula - fã incondicional da cultura sertaneja “all over the world”- coincidiriam com a viagem e que a família estaria completa na aventura.

A segunda fase do planejamento ficou sob a minha responsabilidade. As duas semanas de agosto precisavam ser recheadas com outras atrações. Recorri, como sempre, ao site Viaje na Viagem e encontrei um relato do Fernando Mihalik que ajudou na definição do roteiro pelos estados de Tennessee, Carolina do Sul e Geórgia. Pra minimizar os riscos, descartamos a Flórida por causa da temporada de furacões na região. No dia 21, o céu até poderia ficar nublado, o que atrapalharia a visão do eclipse, mas nada nos impediria de estar a postos no local e hora definidos! (Agora sabemos que a decisão se mostrou totalmente acertada já que uma sequência de furacões vem afetando o Golfo do México desde o final de agosto.) 


O mapa registra as cidades visitadas de carro pelos três estados, tendo Atlanta como ponto inicial e final do percurso. O imenso Dodge Durango, alugado na Alamo, e que acomodava sem aperto as nossas malas, nem pareceu tão grande em meio aos parrudos veículos americanos: picapes turbinadas, muitas vezes com trailers acoplados, utilitários esportivos, motorhomes e incríveis caminhões. No total, rodamos 2.800Km e, sorte a minha, não precisei dirigir nem 100 metros. Essa é uma tarefa para os “fortes”, seres que se dispõem a desbravar, cheios de coragem, automóveis recém-conhecidos, incertos caminhos e diferentes práticas de trânsito.


Apesar de adorar a liberdade que as viagens de carro proporcionam, fujo do assento do motorista e me sinto bem mais confortável como copiloto, mesmo que, às vezes, tenha um pouquinho de dificuldade na leitura do navegador.
- Vamos virar à direita – informo ao motorista da vez.
- Já nesta rua? Ou na próxima?
- Deixa eu ver... (pausa) Entra agora, agora, nesta rua!
Guinada brusca à direita.
- Ops! Acho que me enganei... Era pra entrar na próxima. Agora tá recalculando...

Felizmente, meus companheiros de viagem me levaram por cada milha americana com carinho e em total segurança. Voltei sã e salva, e com disposição para contar, aqui no Blog, os momentos luminosos, sombreados, coloridos, musicais, e de muito aprendizado, que experimentamos nestes 14 dias de agosto. 
O problema é que tem me faltado um pouco de disciplina para escrever. Tudo me distrai, dos eventos felizes aos mais preocupantes acontecimentos. As ideias vão ficando de lado e demoram a virar textos para serem compartilhados. 



Mas, daqui pra frente (juro, dedos em cruz, beijo, beijo), vou me empenhar pra agilizar a atualização do Blog e não deixar os próximos relatos de viagem se transformarem em material pra pesquisa histórica.
Torçam por mim, por favor!









Para saber mais sobre a viagem, leia também: Chattanooga Choo-Choo; Alegria e Música em Nashville ; Enfim, o Eclipse e Great Smoky Mountains

quinta-feira, 29 de junho de 2017

Cinema: Birras, Lembranças e Deleites

Praticamente todo mundo já tinha assistido aos filmes que ganharam o Oscar em 2017, menos a galera aqui de casa. Finalmente, nas 2 últimas semanas, corremos atrás do prejuízo e vimos 3 longas premiados e bastante comentados. Escrever sobre eles, eu sei, pode ser até um desperdício do meu tempo, e do tempo dos meus possíveis leitores. Não pude, entretanto, combater as ideias que teimavam em se apresentar. Resolvi organizá-las em pequenos textos e publicar no Blog. São relatos, em primeira pessoa, de quem quer compartilhar as birras, lembranças e deleites que só os bons filmes sabem despertar.
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Antes do meio do filme, eu já estava me sentindo traída:
Pera aí! O Juan morreu? Mas ele não é o traficante que vira mentor e salva o Chiron da violência e do abandono? Eu li isso na sinopse! Que protetor é este que sucumbe antes da missão cumprida? 

Algumas cenas adiante, tive que me render: o roteiro de Moonlight não trata de superação e redenção. Conta, com amargor e uma tristeza profunda, as batalhas, e derrotas, de um jovem negro, pobre e desamparado.

Embirrei com a sinopse, pela propaganda que julguei enganosa. Quase embirro com o filme todo, entrando numa de questionar cada situação. Aos poucos, no entanto, o personagem foi me comovendo: a expressão solitária do olhar, a economia das palavras, o mal estar com o próprio corpo, mesmo depois de se metamorfosear de garoto franzino em colosso marombado. Com migalhas de amor e cuidado, Chiron sobrevive, apesar de tudo e de quase todos, apesar também da instituição escolar, que mostrada em poucas e absurdas cenas, revela-se totalmente alheia à vida dos jovens estudantes, suas necessidades, desejos e problemas. Numa escola descompromissada, o que importa realmente ao professor é o conceito de ácido desoxirribonucleico... Triste realidade! 

Já no fim do filme, a minha birra voltou. Ouve-se Caetano cantando Cucurrucucu Paloma, uma bonita canção, sem dúvida, mas que ficou totalmente atrelada ao enredo de Fale com Ela, de Almodóvar. Fosse eu a responsável pela trilha sonora, não teria dúvidas, escolheria como música-tema Gota D’Água, na voz de Chico Buarque: 
          Deixe em paz meu coração, que ele é um pote até aqui de mágoa...
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Diferentemente de Moonlight, Manchester à Beira Mar me arrebatou desde o princípio. Já nas cenas iniciais, vivi uma espécie de déjà vu. A paisagem pareceu familiar: céu coberto de nuvens cinzentas, vento gelado, neve, e um frio de doer. Eu nunca estive em Manchester, moro entre os trópicos e começo a me agasalhar quando os termômetros atingem 20 graus, mas, de pronto, intuí a dramática força da história. Creio que as lembranças da minha viagem a Cape Cod, uma península no mesmo estado de Massachusetts onde o filme acontece, contribuíram para esta sintonia. Embora fosse outono, uma intensa frente fria nublou os nossos dias, dando um toque melancólico e introspectivo a cada experiência. Em tons existenciais similares, mas bem mais fortes, o roteiro do filme, organizado em flashbacks, vai, aos poucos, nos mostrando porque é sempre inverno no coração do protagonista. 

Lee Chandler é, como o cenário ao seu redor, um homem monocromático: rosto inexpressivo, raras palavras, movimentos econômicos, contenção poucas vezes quebrada em explosões de fúria. O comovente, no entanto, é perceber que, mesmo com toda a dor, ele não está sozinho. E é a instigante relação com o sobrinho - um personagem adorável, desejoso de ser feliz - que move o filme. Ao final, abre-se um pedacinho de azul no céu escuro; pode ser que o sol venha e transforme em luz e cor o que era tristeza e frio. Não há promessa de verão, só um pouco de esperança.
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Já tinha ouvido várias opiniões sobre La La Land antes de assistir ao filme. Muitos amigos adoraram o musical e tiveram ímpetos de sair bailando do cinema. Outros tantos, odiaram, e voltaram pra casa maldizendo o roteiro. Considerando a polêmica, não fui com muita sede ao pote hollywoodiano; esperava me divertir, e só. 

Acontece que entrei pro clube dos que gostaram muito! La La Land é um musical, por certo, mas se esquiva com habilidade de algumas chatices próprias do gênero. Com exceção da longa cena inicial – a dos motoristas que, num enorme engarrafamento, saem dos carros para cantar e dançar como se fosse a coisa mais natural do mundo -, as coreografias e canções são enxutas e bem enganchadas às situações da história. Elas respeitam as capacidades dos atores principais, que embora não sejam exímios dançarinos ou talentosos cantores, saem-se bem na execução dos números musicais. 

Os personagens Mia e Sebastian são pessoas comuns em busca de seus sonhos, são “gente como a gente”. Têm certezas, dúvidas, medos, e tomam decisões que levam o filme a um final feliz, mas sem o “happy ending” típico das histórias de amor. Para mim, a grande sacada do roteiro foi o momento “E se...”, quando eles se reencontram tempos depois de separados e imaginam como teria sido a vida em comum se, nas encruzilhadas da vida, tivessem feito outras escolhas. A sequência de cenas idílicas é interrompida e um misto de sentimentos os invade: uma pontinha de tristeza somada à certeza de que viver este amor os ajudou a ser felizes. E daí seguem em frente, fortalecidos, e separados.
Fim.

segunda-feira, 12 de junho de 2017

E se você ainda me amar

Não fala nada, não fala! Preciso recompor a respiração. Nem sei como tive fôlego pra escalar este lance de escadas. A idade pesou nestes últimos anos, mas deixa estar, este assunto não te interessa, eu sei. Ficou surpreso por me ver aqui? Não precisa disfarçar, a sala está vazia, somos só nós dois outra vez.

Você está diferente. Desculpe o riso, não pude me conter, acho que é nervosismo, mas a falta do bigode deu destaque aos lábios finos, tão apertados, quase imperceptíveis. Ficou engraçada esta ausência de boca num ser repleto de palavras. Os cabelos estão mais ralos e o corpo mais magro; aposto que precisou de auxílio para vencer os degraus do térreo até aqui. Você nunca vai dar o braço a torcer, embora não seja vergonha nenhuma precisar de ajuda nesta sua idade. Acha que eu esqueci? Sei o dia, o ano e até a hora em que você nasceu, e a minha cabeça ainda está boa para os cálculos.

Só não sei dizer direito porque fiz questão de logo vir te ver. Sabe quanto tempo faz? Eu contei cada dia, cada semana, cada mês. Dez anos! Não fala nada, por favor, não adianta tentar se explicar, já imagino todas as suas desculpas. São como frágeis bolhas que, no ar, se desmancham, respingam nos olhos e só me fazem chorar. 

Às vezes, eu penso ter sido orgulho o que te motivou. Um espírito iluminado encarnado num corpo vigoroso – era assim que você se percebia, não era? Superior a cada ser humano à sua volta - esposa, filhas, todos. Essa pose de macho confiante é só pose, só casca. Por dentro, um ego enorme ao lado de um buraco que nada tampa, nem a música, nem nenhuma mudança de endereço, de cidade, de planeta. Olha, é difícil admitir, mas preciso confessar: o orgulho foi meu também, eu amava a minha própria face refletida no seu carismático espelho. 

Incrível como você reage, sempre foi assim. É só eu começar a falar sobre mim, quer dizer, sobre nós, que você fica com esse ar distraído, alheio, como se nada te dissesse respeito. Finja o quanto quiser, hoje não vai me calar.

No início, eu não me preocupei muito, já tinha me acostumado a tocar a vida apesar da sua ausência. Meses e meses longe de casa por causa dos shows... Mas havia a certeza da volta, e do amor que você dizia sentir. Sem muita pressa, o tempo foi borrando as minhas convicções. Só me dei conta do real estrago quando a nossa vizinha, lembra, aquela beata que vivia nos atormentando com insinuações maldosas, tocou a campainha para me dar a notícia. Ela revirava os olhos e torcia as mãos enquanto pronunciava cada sílaba, num dissimulado constrangimento. Demorei pra compreender a mensagem – alguém havia visto você no Uruguai, numa estância perto de Montevidéu. A vizinha se manteve em pé, à porta, saboreando o baque no meu corpo, e os meus gritos: “No Uruguai! Uruguai?”. Talvez ela não tenha entendido o meu desespero, depois de tantos anos eu já não deveria estar anestesiada? Mas você entende: quebrou-se o espelho que nos refletia. Foi covardia o que te motivou, só pode ter sido covardia, fraqueza, baixeza mesmo, ir se refugiar num país em que tínhamos, um dia, sido felizes. 

Tive ganas de pegar o primeiro avião. Não pra te ver, não... Eu arrancaria e traria de volta o simbólico cadeado colocado na grade da fonte, vomitaria as carnes tenras e o vinho tinto das celebrações, apagaria cada pingo de alegria espalhado nas pradarias. Não fui. Tive medo de romper de vez o fio de seda que nos unia. E se você ainda me amasse, como nos meus sonhos mais secretos? E se me amasse, como naquela risível história tantas vezes repetida nos encontros da família? Lembra? O marido avisa à esposa: vou sair pra comprar cigarros. Volta seis meses depois, maço de Hollywood nas mãos, a chave da casa balançando do bolso da calça. Entra, beija a testa da mulher e a vida segue como se mais nada houvesse. Você ainda fuma? Não importa! Se ainda me amar, podemos brincar de comprar cigarros, e interpretar a família feliz como se mais nada tivesse havido. O beijo na testa eu posso te dar agora.

Estou me sentindo um pouco tonta, me deixe sentar ao seu lado. Deve ser a labirintite. Se as meninas estivessem aqui - não, elas não quiseram vir te ver - diriam que essa tonteira é o corpo reagindo às loucuras da mente. Que é uma total insanidade não arredar pé do nosso apartamento nem admitir trocar a fechadura da porta da frente. Elas zombariam de mim por você não ter mais a chave de casa.

Espera, não precisa falar nada, seus amigos estão chegando. Vou deixar que se aproximem e cantem as velhas canções, façam as orações, prestem as homenagens. O sol está forte, não pretendo seguir o cortejo, você me desculpará, por certo. Talvez nos reencontremos em outro tempo. Outro lugar? Quem sabe? Mas isso, por favor, só se você ainda me amar.

(Conto produzido como exercício da Oficina de Criação Literária
do professor Marcelo Spalding)

terça-feira, 28 de março de 2017

Assis Horta Retratos

Quando li O Instante Certo, de Dorrit Harazim, gostei em especial do capítulo dedicado a Assis Horta, fotógrafo mineiro com uma trajetória marcante na tarefa de dar visibilidade à classe trabalhadora brasileira. Ele teve a vida transformada por um novo campo de atuação aberto com o lançamento CLT: em toda Carteira de Trabalho deveria constar uma foto 3x4 identificando o portador. Por sua vez, ele resgatou e dignificou, com as fotografias identificatórias e os registros de família, as faces, e os corpos, de homens e mulheres pobres de Diamantina. A leitura me fez pensar nos retratos de meus avós e no meu próprio na Carteira de Trabalho, uma reflexão misturando história pessoal com história do país. Por tudo isto, quando soube da exposição Assis Horta Retratos, em cartaz no Espaço Cultural BNDES, corri para conhecer melhor este senhor de 99 anos e sua coleção de imagens.

Na exposição, fotos impressas em grande formato se espalham pelo salão. São retratos em tamanho real de homens, mulheres e crianças fotografados nas décadas de 40 e 50. Parecem pinturas pelos contrastes de luz e sombra, pelos olhares expressivos. O estúdio do fotógrafo, como se vê nas imagens, é bem simples em seus recursos: um invariável painel pintado serve de fundo, um tapete persa gasto, uma cadeira de palhinha e uma esguia mesinha lateral se revezam em possíveis composições com os personagens da vez.

Simples também são os retratados, que se apresentam sozinhos ou em grupos. Mulheres trajando vestidos discretos, cintados, sempre cobrindo os joelhos; grampos ou presilhas domando os cachos dos cabelos. Homens de terno e gravata, lenço no bolso, cabeleira gomalinada. O chapéu aparece como elemento indicador de respeitabilidade, além de compor elegantemente as fotografias. Os sapatos surrados chamaram-me a atenção. Dorrit conta que Assis Horta guardava no estúdio roupas masculinas para emprestar, já que os senhores chegavam para a sessão de fotos sem o apuro necessário, daí deduzo que os sapatos fossem dos próprios, com as marcas do tempo e do barro das ruas.
Nas paredes laterais, estão expostas inúmeras fotos tiradas para as carteiras de trabalho. Um apanhado de pessoas sérias, corpos eretos e plaquinhas com a data em que os takes foram feitos. Passear diante delas é tentar decifrar vivências e sentimentos escondidos. 
Objetos de trabalho e uma recriação do estúdio de Diamantina completam a exposição. Dá até pra brincar, ensaiando umas poses diante do painel e usando o celular em vez da Rolleiflex. O difícil mesmo é conseguir algum bom resultado com um click único, marca do estilo de Assis Horta, que nunca repetia o registro de uma cena. Fiquei imaginando o que deve pensar o velho fotógrafo sobre o nosso contemporâneo apego  pelo disparador...

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Assis Horta Retratos – de 15 de março a 5 de maio de 2017
Espaço Cultural BNDES – Rio de Janeiro
O guia impresso da exposição ajuda na compreensão dos detalhes, mas a leitura do capítulo de O Instante Certo amplia consideravelmente a experiência visual. Eu recomendo a dobradinha.
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Para ler a postagem sobre minha admiração pela jornalista Dorrit Harazim, clique aqui.

Quero Ser Dorrit Harazim

Desço do táxi em frente à livraria do Leblon. O lançamento está marcado para às sete horas, ainda tenho alguns minutos de espera ansiosa. Outros interessados já se enfileiram diante da mesa preparada para os autógrafos. Dirijo-me ao caixa e, com meu exemplar nas mãos, junto-me aos admiradores da jornalista. 

Enquanto aguardo nosso primeiro encontro pessoal, folheio as páginas de O Instante Certo e confiro trechos das histórias, nascidas a partir de registros fotográficos. Das fotos impactantes, saltam histórias reais sobre os fotógrafos e seus fotografados, tendo como pano de fundo os principais temas sociais e políticos que os influenciaram. Pra completar, questões técnicas e estéticas da própria arte da fotografia. São todos textos novos para mim, embora já tivessem sido publicados em diferentes veículos nos últimos 20 anos. É pena, mas faz bem menos tempo que me encantei com o estilo de escrita da autora. Não tenho certeza de quando as colunas de O Globo começaram a fazer parte dos meus domingos, mas toda semana, mergulho fundo na narrativa elegante e inteligente da jornalista, hábil em tecer os múltiplos fios que o tema do dia sugere. Os assuntos variam, dos mais populares - terrorismo, eleições nos EUA, crise na política brasileira - aos mais prosaicos, como um esparadrapo no Museu do Amanhã. O fato é que sempre termino a leitura assaltada por um misto de sentimentos: uma enorme admiração e uma pontinha de inveja. Desejo, como naquele roteiro de cinema, quinze minutos pra entrar na mente de Dorrit Harazim, e, sendo a própria, capturar uma parcela de suas habilidades narrativas. A ousadia, mesmo que em devaneio, é imediatamente castigada: sou cuspida de volta à noite de autógrafos, bem no momento em que a senhora miúda e magra, tão alva na pele, cabelos, e até na blusa, toma posição à mesa. Parece frágil a mulher que correu mundo para cobrir guerras, ditaduras, atentados terroristas, jogos olímpicos, eleições. Um contraste enorme quando penso na robustez dos seus escritos. 

Ensaio um cumprimento para a hora h: Sou sua fã! (Fã, que ridículo! Ela vai me achar fútil). Ou, então: Gosto muito dos seus textos! (É óbvio, todos estão aqui pelo mesmo motivo!). Descarto, uma a uma, as frases feitas para me diferenciar nos parcos minutos em que estenderei meu livro no ritual da noite. Olhos livres no ambiente, reconheço uma pessoa que acompanha a autora - será uma assessora, ou parente? Tenho tempo pra recordar de onde a conheço; estou quase na pole position, quando a mulher se aproxima. Surpreende-se por me ver ali, ela comenta. Respondo que eu também. Pensei que trabalhasse com cinema, completo. Ela conta brevemente a sua relação com a jornalista e, em seguida, me apresenta à Dorrit. Vibro por já não ser uma reles leitora misturada à multidão e trato de me mostrar como tal. Em voz firme, proclamo: Sou sua fã! Gosto muito dos seus textos! Dorrit me olha, sorri levemente, rabisca o autógrafo e se deixa fotografar ao meu lado.
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Embora O Instante Certo já habite a minha biblioteca há alguns meses (a noite de autógrafos aconteceu em junho de 2016), o relato da minha experiência tinha ficado engavetado. Escrevi algumas versões, mas insatisfeita, acabei me dedicando à leitura do livro, bem mais interessante que qualquer texto que eu pudesse escrever. O tempo passou até que, na semana passada, a abertura da exposição Assis Horta Retratos me fez recordar o livro e, em especial, o capítulo referente ao fotógrafo mineiro que retratou a classe operária de Diamantina nas décadas de 40 e 50. Depois da visita, consegui parir o texto encruado, além de um novinho em folha, que pode ser conferido aqui.

sábado, 11 de fevereiro de 2017

Eu choro pelo Patinho Feio

Manhã de sábado, abro os olhos depois de uma noite difícil. Dormir com a bota ortopédica é um desconforto total: o peso da armação, o formigamento dos dedos, a falta de equilíbrio entre uma perna e outra... Lá pelas tantas da madrugada, arranco a bendita e consigo, entre uma virada de acomodação e outra, alguns cochilos providenciais.

Confiro o relógio e me dou conta que já passa das sete. Terão os policiais militares do Espirito Santo voltado ao trabalho? A semana no estado foi loucura: movimento das mulheres, situação de guerra, criminalidade em alta, população sitiada. Acompanhei as notícias com empatia adicional. Morei em Vitória nas décadas de 70 e 80, reconheço vários lugares mostrados nas imagens de TV - ruas, praças, o edifício do governo no centro da cidade. Imagino-me estudante da UFES, sem ônibus pra chegar lá, sem aulas... Sou outra vez professora de escola particular, vendo o espaço fechado e a grita dos pais que, mesmo com medo, precisam trabalhar. Com quem ficarão as crianças? Como funcionar sem segurança, sem os funcionários? Recordo que, na crise, todos perdem, é quase impossível conciliar interesses e necessidades. 

Reviro os pensamentos, levanto da cama e lamento que a greve tenha vindo logo agora que as coisas pareciam estar mudando. Eu via o Espírito Santo como o Patinho Feio da região sudeste: sem o charme do Rio de Janeiro, sem o poderio econômico de São Paulo, sem a grandeza cultural de Minas Gerais... O estado mais sem graça do pedaço, na rabeira da fila dos filhotes de Mamãe Pata. O pior para mim era perceber, enquanto morava por lá, que o bichinho estava conformado com a posição.

Quando, nos últimos anos, as belas penas do Cisne começaram a aparecer no noticiário, me senti tocada, orgulhosa pela virada de identidade do estado. Agora se apresentava como um dos poucos membros do galinheiro que mantinham as contas em dia. Respeito à lei, salários pagos, mesmo com o orçamento apertado. O Patinho em transformação aprendeu que o dinheiro do petróleo é incerto como ovo no fiofó da Mamãe. E foi animador ouvir os governantes grasnando as boas novas, relembrando que os contos brasileiros podem ter final feliz. Podem?? 

A semana foi especialmente triste pela volta da incerteza, pela percepção da frágil condição de “Cisne novo”. Mesmo com dificuldades e contradições, próprias destes momentos difíceis, torço para que o povo capixaba, governantes e instituições entendam a crise como motor de avanço, de aperfeiçoamento, sem abandono dos valores e das ações que tem contribuído para a metamorfose do Patinho. E que continuem a acreditar na utopia do Cisne. Nós aqui do estado vizinho, descrentes de tudo, constatamos que a realidade pode ser mais cruel do que contos e fábulas. No nosso enredo, o pato é guloso, inconsequente e tresloucado. Um ser sem cautela que vai parar na panela! 

Em tempo: fico sabendo que os policiais não interromperam a greve. Vontade de voltar pra cama, com bota ortopédica e tudo...

Ilustração do artista alemão Theo van Hoytema (1893) para o livro de Andersen “O Patinho Feio”.

domingo, 5 de fevereiro de 2017

A Medida do Inesperado

Quarto dia do mês.                                                      
                Até o Carnaval, eu boto a vida em ordem.
Treze horas e vinte minutos.                                   
                Intervalo pro almoço, finalmente!
Um buraco na calçada.                               
                40 centímetros de frente e 20 de profundidade. 
Dois segundos de distração.                                    
                2 míseros segundos e tudo muda. Rebobina a fita, por favor!
Um tornozelo torcido.                                                
                Virou uma bola de pingue-pongue. Tô ficando tonta...
Dois joelhos doloridos, uma das mãos ferida.            
                Podia ter sido só isso.
Duas mulheres solidárias.                                         
                Deu vontade de chorar. Não pela dor, por gratidão.
Um copo de água e uma bolsa de gelo.               
                Remédios pra tudo. Quase tudo...
Doze reais para o táxi.                                                
                Menos 1 hora de curso.
Duas horas na emergência.                                      
                Menos 3 horas de curso. Menos 200 reais no bolso.
Três radiografias, um laudo.                                     
                Quero ir pra casa!
Quinze dias com bota ortopédica. 
                Até a Páscoa, eu boto a vida em ordem...