domingo, 23 de junho de 2019

Duas Viagens

Programar duas viagens em seguida, num espaço de dois meses, foi uma baita ousadia –ousadia para o corpo, combalido pelas décadas de uso, e também para o bolso. Aconteceu por acaso, sem nenhum planejamento, e por culpa do Atacama que, preterido em outras ocasiões, correu para o início da fila e fincou pé logo ali no mês de abril. E, como cismei que viagem à Europa que se preze tem que ser na primavera, de preferência em maio, o jeito foi encarar a dobradinha.

Ainda estávamos na Espanha quando comecei a perceber que, embora próximas no tempo, as duas viagens seriam bem diferentes, mas, mesmo tão distintas, se tornariam especialmente complementares. 

As diferenças foram mais fáceis de ver. Na vastidão intocada do deserto, a Natureza grita com toda a sua força. É a Terra despida de qualquer adereço cultural, uma amostra de como seria o planeta caso a espécie humana não tivesse vingado por aqui. Já do outro lado do mundo, no Velho Continente, o protagonismo é da História, essa força construtora e contínua, exercida por cada indivíduo em seu grupo social num determinado tempo, e ao longo dos séculos. Modos de vida que se estabeleceram e se modificaram de acordo com necessidades e interesses, sujeitos às disputas, aos acordos e às resignações. 

Quando as duas experiências – Natureza e História - começaram a se entrelaçar na minha mente, um novo filtro interferiu no meu olhar de viajante, uma espécie de óculos com lente multifocal. Interpretei a Andaluzia, a Provence e a Côte D’Azur por meio dele. Cidades encarapitadas sobre penhascos, pontes antiquíssimas de pedra, sofisticados arabescos, danças e músicas emocionantes, pinturas ensolaradas, todas essas expressões da ação humana foram temperadas pela compreensão da nossa enorme insignificância diante das forças naturais. Olhando por outro ângulo, no entanto, não é justamente esta pequeneza que confere à humanidade um atestado de fortaleza? Afinal, cidades encarapitadas sobre penhascos, pontes antiquíssimas de pedra e as várias manifestações artísticas são exemplos do monumental trabalho que fomos capazes de desenvolver, apesar das condições adversas.

Sem esquecer dos dramáticos períodos vividos ao longo dos tempos, em que a natureza mostrou a sua fúria e os seres humanos viveram toda a sua irracionalidade, fiquei com a feliz sensação que nosso saldo civilizatório é positivo. Sentimento bom pra carregar na mochila em cada dia da viagem, mas ainda melhor pra trazer na bagagem de volta pra casa. Se o que vejo hoje à minha volta me aflige, se identifico um difícil período de desesperança, pego meus óculos com lente multifocal e confio na nossa capacidade de transformar pequeneza em fortaleza. Assim me ensinaram as duas viagens.

Ronda - Andaluzia - Espanha
Pont du Gard - Remoulins - França
Palacios Nazaríes de La Alhambra de Granada – Espanha
Dança Flamenca - Sevilha - Espanha
Campo de trigo com ciprestes/Oliveiras com sol amarelo - Van Gogh
St-Rémy-de-Provence – França