segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Amélia

A distância é pequena. Amélia costuma contar os passos desde a saída da estação do Metrô: 46, 47, 48, 49, 50... Pronto, aperta o interfone, o porteiro responde destravando a porta. Cumprimentam-se brevemente. Vencendo os passos seguintes e os degraus da portaria, logo estará em casa. Bem mais rápido e prático do que morar no Grajaú, onde ela perdia as contas lá pelo segundo quarteirão depois de descer do ônibus. 

Revira a bolsa à procura do chaveiro entre ampolas de vitamina C e sachês de colágeno escapulidos da nécessaire. “Alexa, acenda as lâmpadas”, ela pede enquanto vai se livrando do blazer e dos saltos. A caixinha arredondada, muito delicada e bem acabada, desperta de seu sono; linhas coloridas dançam na circunferência superior num vai e vem alegre. Luzes iluminam o apartamento. Amélia circula entre os cômodos, recolhe a toalha de banho esquecida na cama, coloca na pia a xícara do café da manhã.
Senta-se no sofá branco - antigo desejo de consumo realizado pela designer contratada na última reforma - puxa o assento retrátil e descansa as pernas sobre ele. Apoia a cabeça na almofada, fecha os olhos por um momento. O silêncio da casa a incomoda. “Alexa, toca a playlist do Queen.” A casa se enche com o som da banda, e Amélia sorri. Ela ama essa satisfação automática. Sim, Alexa a tinha ouvido: sem delongas, sem cobranças, sem lamúrias. O céu! 

Vai dançando até o quarto, radio ga ga, radio goo goo, a procura do smartphone. Teria ficado no escritório? Um breve franzir de testa é substituído pela expiração aliviada; o aparelho largado ao lado da sacola da Le Lis Blanc. Dá uma conferida no vestido azul de renda, saia evasê, decote de ombro a ombro, tão sexy! Uma pequena fortuna, mas terá sido um bom investimento. Rodopia diante do espelho, oh, won't you take me home tonight

De volta ao sofá, prepara-se para o ritual de todas as noites. Busca, na tela, o atalho com a pequena chama branca e abre o aplicativo. Os dedos não obedecem à sua ansiedade. Segue-se uma pausa para encontrar os óculos, e, em seguida, a visão da caixa de mensagens sem novidades. Checa o wifi, reinicia o roteador, a internet no bairro anda péssima. Mas nada muda naquele país das possibilidades. Aliás, há dois meses vive de muitas deslizadas e poucos matches. Já seguiu todas as orientações para ser feliz no Tinder – duas revisões no texto da descrição, a foto do perfil é de cinco anos atrás, triplicou o raio de busca de usuários compatíveis. Até considerou rever a faixa etária desejada - dos 18 aos 75 anos, talvez? “Ridícula! Que coisa ridícula!”, fala, ao perceber o fiasco de tudo aquilo. Larga o celular na mesinha de centro. Se ao menos fosse uma pessoa autoconfiante... Autoconfiante como Fred Mercury, um indivíduo feio e dentuço que sabia ser sensual. I was born to take care of you, every single day of my life, cantarola baixinho Amélia, com ele, para ele. 

Não devia ter cedido aos conselhos das amigas, recrimina-se. Não tem vocação para relacionamentos virtuais, se expor assim, sem nenhum controle! Dá preguiça e medo ao mesmo tempo. Preguiça de começar uma conversa do zero: contar das viagens, da família e do trabalho; explicar mal entendidos; fazer graça, quando o humor não é sua praia; tentar ser interessante sem saber o que o outro considera interessante. E o medo de encontrar o serial killer mais próximo, tantas histórias de violência e golpes contra mulheres, e elas ali, impotentes. Teria ficado na zona de conforto, não fosse a exigência do coração solitário. Love of my life, love of my life, cadê você? 

Deita-se no sofá, dobra as pernas, aconchega-se em seus próprios braços. “Alexa, estou me sentindo muito só!”, confidencia meio sem pensar. Num instante, a música se cala, o círculo colorido volta a se agitar. E uma voz suave lhe responde: “Lamento saber disto. Assista a um filme engraçado ou tome um bom vinho”. 

Embora o timbre de Alexa a conforte, Amélia aguarda ansiosamente a voz de Samuel L. Jackson, uma promessa da Amazon por módicos noventa e nove centavos de dólar. É pena, ela suspira, que não se possa ter tudo. A novidade só ficaria perfeita se o corpo do novo assistente virtual tivesse uma forma máscula: um cubo de arestas solenes, moldado em bronze escuro. Ela o colocaria em lugar de destaque, um pedestal bem no meio da sala. O céu! 

“Alexa, um vinho cairia bem. Hoje tem alguma comédia no Sky? Mas, por favor, nada de comédias românticas, você já sabe que não me fazem bem.” A TV da sala se ilumina, as imagens irrequietas a distraem, até a fazem sorrir. O interfone não demora a tocar, Amélia recebe o Malbec: alto teor alcoólico, aquele mesmo que a havia interessado dias antes no site do Evino. 

No fim da noite, bem ao lado do celular sobre a mesinha de centro, descansam duas taças de vinho. O céu!

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  • A primeira versão de Amélia está completando hoje um ano de vida. Como presente de aniversário para a minha personagem, revisei o texto para aproximá-lo do gênero Conto. Hoje publico essa nova Amélia, com mais carne e osso, e que foi trabalhada na Oficina de Contos, da Estação das Letras, coordenada por João Paulo Vaz.
  • Completando o renascimento de Amélia, Eline de Medeiros criou uma nova ilustração.