quarta-feira, 4 de julho de 2018

Elegância Verde

Foi no início da viagem que a minha mania linguística começou a se manifestar. Era só cruzar uma rua arborizada ou avistar um pequeno jardim, que eu já concluía: “Como Londres é verde!”. Circulando pelas praças e pelas áreas externas dos museus, não me cansava de constatar: “Londres é tão verde, né?”. Mas eu realmente fiquei repetitiva nas visitas aos grandes parques da cidade. É que Londres tem uma coleção excepcional de espaços amplos, e verdes, e belamente planejados, disponíveis para a fruição das pessoas nos mais diferentes bairros. Muitos deles são chamados de parques reais por terem sido propriedades dos monarcas, e de uso exclusivo de seus familiares e amigos. Com o passar do tempo e o crescimento da área urbana, eles foram sendo, para a felicidade geral, incorporados à vida da população.

Um dos meus parques preferidos foi o Regent’s Park, com amplos gramados, trilhas para caminhada, um enorme lago repleto de aves e peixes, e jardins floridos dentro de outros jardins floridos. Já o Mário caiu de amores pelo St James’s Park, encravado entre palácios, numa das áreas mais clássicas da capital. Árvores majestosas, patos e marrecos, flores de todas as cores e alamedas sombreadas acolhem os visitantes. Olhando a vista do parque ao cruzar a ponte, logo entoei o bordão: “Que lindo! Londres é muito verde, mesmo!”.

St James's Park
Ainda visitamos o Holland Park, invadido por londrinos esticados no gramado ensolarado, e o Kensington Gardens que, além de toda beleza natural, também abriga fontes, estátuas e um memorial em homenagem à princesa Diana. Em cada passeio, as mesmas exclamações verdes me acompanhavam.

E de nada adiantou a Ângela, brasileira há anos morando na Inglaterra, e especialista em árvores e jardins, explicar que, tivesse eu chegado dois meses antes, durante o inverno, veria tons de marrom e cinza predominando na paisagem, e não toda a exuberância que me cativou. Ouvi o discurso com atenção, mas, teimosa, insisti: “Sabe que eu estou impressionada como a cidade é verde!”.

Depois de nos despedirmos de Londres, rumamos para o centro da ilha, e, embora o verde não tenha perdido lugar nas minhas manifestações, precisei temperá-lo com o amarelo das plantações de canola, o branco das centenas de ovelhas e o multicolorido das flores silvestres que se alastravam em meio aos prados. Nesta região rural, tudo me pareceu perfeitamente ordenado: árvores e arbustos em conjuntos harmônicos distribuídos pelos campos; ondulações discretas de altitude; sólidos muros de pedras riscando os espaços. “Que elegância tem o verde da Inglaterra!”, passei a analisar. Foi quando notei que um novo conceito tinha se intrometido na minha percepção, e na minha linguagem.
Avebury Stone Circle
Na volta da viagem, relendo Os Vestígios do Dia, de Kazuo Ishiguro (Prêmio Nobel de Literatura de 2017), descobri que tenho companhia nesta admiração pela natureza inglesa. O mordomo Stevens, personagem do romance, relata o quanto a beleza dos campos o impactou:

“Cheguei, então, a uma pequena clareira — sem dúvida, o local a que o homem havia se referido. Aí deparei com um banco, e, de fato, com uma vista das mais maravilhosas, dominando quilômetros e quilômetros de campos em torno. O que se via era sobretudo campo sobre campo, rolando até a distância. A terra subia e descia suavemente, e os prados eram delimitados por moitas e árvores. Em alguns lugares distantes havia pontos que supus que fossem carneiros.” (p.36)
Vista da Broadway Tower - Cotswolds
O que eu identifiquei como elegância na paisagem da Inglaterra, Stevens caracteriza como grandeza. “E, no entanto, o que é exatamente essa grandeza?”, pergunta-se ele, para logo em seguida responder:

“Diria que é a própria ausência de drama ou espetaculosidade óbvios que distingue a beleza da nossa terra. O que é perfeito é a calma dessa beleza, a sensação de contenção. Como se o país soubesse da sua própria beleza, e não sentisse nenhuma necessidade de proclamá-la.”(p.39)

Na narrativa de Ishiguro, recordei a minha jornada pelos discretos cenários ingleses, mas senti muita pena por Stevens não me acompanhar no restante da viagem pela Grã-Bretanha. Por força da profissão e do temperamento, ele não se afasta da familiaridade confortável da mãe-pátria. 

Fiquei curiosa sobre o que diria o formal mordomo ao se deparar com o exibicionismo das paisagens da Escócia: dramáticos vales, latitudes extremas, terras altas e tanta fartura de água. Talvez se escandalizasse diante da falta de comedimento escocês, ou, quem sabe, secretamente invejasse os arroubos das terras desavergonhadas dos vizinhos ao norte.


Para ver outras imagens, clique aqui: Galeria de Fotos - Elegância Verde

Para saber mais sobre a viagem, leia também: 1- Viagens e Histórias ; 3- ZDP