quinta-feira, 14 de julho de 2016

A Cerimônia do Chá

(releitura do conto A Lei do Silêncio, de Victor Giudice,
exercício do curso de Introdução aos Gêneros Literários)
Casei por amor.
Você não acredita? Quanto preconceito! Uma jovem pobre, órfã de pai e moradora de uma pensão no Catete não poderia se enamorar de um refinado homem de meia idade?

Pois fique sabendo que casei por amor!
Amor, sim, pelas reais possibilidades de ascensão social que aquele senhor representava. Amor pela concretização de um sonho cuidadosamente acalentado desde a meninice tão escassa de prazeres.
Quer maior demonstração de amor próprio?

Do início do namoro ao casamento, me vali de algumas artimanhas e, claro, de minha boa aparência. O porte esguio, a pele clara e os olhos azuis foram as credenciais para que circulasse sem constrangimentos no ambiente esnobe da futura família. No entanto, de nada teriam adiantado não fosse o conveniente acidente que nos aproximou. Atravessava distraída a rua e não percebi a aproximação do Cadillac vermelho. Por sorte, o motorista conseguiu desviar e, nem eu, nem o Cadillac, sofremos maiores danos. Foram os astros! Só mesmo o Sol em conjunção com Júpiter pra o nosso encontro acontecer, e o motorista logo, logo, virar meu marido.

Jura? Você não crê em astrologia? Eu também não! Mas uma explicação romântica é muito conveniente pra quem se casa por amor, certo?

Mudamos para um enorme apartamento num elegante prédio da Praia do Flamengo, um pouco antes da inauguração do Aterro. De lá pra cá, dediquei-me, em êxtase, às viagens à Europa, às roupas alinhadas, aos objetos de luxo. Tenho especial apreço pelo aparelho de chá de Limoges, disposto delicadamente na cristaleira da sala, de modo que possa usá-lo sempre que necessário.

Sou uma mulher realizada, e até poderia dizer que alcancei a felicidade não fosse um pequeno desvio. Todas as noites, após o jantar, enquanto meu marido prepara a sua xícara de chá, desato a recriminá-lo por adoçar em demasia a bebida. E tanto falo, e repito, sobre os malefícios do açúcar que o homem chega a se exasperar. Eu não recuo, continuo a irritante lengalenga até que ele aceite, goela abaixo, o amargor da nossa cerimônia do chá.
Você deve estar comovido com os meus cuidados de esposa! Que tolo! Nesse jogo verbal diário convivem prazer e desprezo, ilusão e cinismo... Um jorro incontrolável de palavras cuspidas entredentes! Meu marido percebe... e joga também.

Mas hoje, quando me virei com o açucareiro nas mãos, vi-o empunhando o Colt e apontando em minha direção. Num flash, a situação me lembrou um duelo de faroeste: dois personagens, cada qual com sua arma em posição de tiro. Pousei delicadamente o açucareiro sobre a mesinha chippendale e aguardei que a cena se desenrolasse com elegância cinematográfica. Um ou dois tiros, poucos danos aos objetos da sala, nenhuma algazarra que perturbe a lei do silêncio... É como eu faria.