segunda-feira, 6 de julho de 2020

Deve ter sido

Deve ter sido a canção do Gil que perturbou a faxina na cozinha. Mirna estava ocupada com produtos e técnicas de limpeza, resolvera testar a sugestão de Rosa: ao invés da vassoura, usar o aspirador em todos os cômodos da casa. Funcionara – muito mais prático que o abaixa-levanta para alinhar a pá de lixo e o pique-pega com os arredios tufos de poeira. Os versos da canção a fizeram recordar o restante da conversa com a amiga na noite anterior. Falaram-se por WhatsApp sobre as descobertas domésticas da quarentena, a falta que as diaristas fazem, a compulsão de uma pelo chocolate, o vinho que seduzia a outra. Ao final, concluíram: “Tá difícil, né, amiga?”, “É, tá difícil pra caralho. Pra ca-ra-lho!”.

Deve ter sido o palavrão, ou a ênfase, que colocou Mirna em alerta. Rosa sempre fora educada e contida nas revelações. Observou-a pela câmera do celular: cabelos desalinhados, vestido estampado de malha retirado do fundo do armário, nenhuma bijuteria - o modelito típico das mulheres em isolamento social, não fossem os olhos irrequietos e o pescoço virando repetidas vezes para a porta, como se controlasse a entrada de alguém. Mirna decidiu ser direta e perguntar logo sobre o casamento com Daniel. Tinha presenciado tantas brigas durante o Carnaval...

Deve ter sido a franqueza da pergunta que desatou em Rosa a urgência da resposta: sentia-se sozinha, mais velha, mais flácida, menos amada; sentia-se tão cansada quanto inútil; sentia-se uma ingrata já que o marido até ajudava nas tarefas, coitado, só não gostava de limpar o banheiro ou lavar as panelas. Contou como abrira mão das lives da Teresa Cristina para acompanhar Daniel nas maratonas do Netflix; e de como restringira suas aulas de yoga pelo YouTube para que a música zen e as mensagens relaxantes não o irritassem durante o home office.

Deve ter sido a conexão ruim que fez a conversa travar justamente ali. Mirna ainda tentou uma nova ligação, mas Rosa teclou que Daniel tinha chegado. Falariam no dia seguinte, sem falta. Mirna completou: “Se cuida! Se precisar, me liga”.

Deve ter sido a voz rouca do Gil se espalhando pela cozinha – o seu amor, ame-o e deixe-o ser o que ele é, ser o que ele é - que interrompeu os devaneios de Mirna, para, em seguida, ouvir o interfone. Era o porteiro, avisando que um policial queria falar com ela. “É sobre uma mulher, Rosa Junqueira, a senhora conhece?”

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Texto produzido para o curso Texto Puxa Texto, da Estação das Letras, coordenado pelo professor Juva Batella.

Na Rede:
O Seu Amor, canção de Gilberto Gil. Clique abaixo para ouvir: