quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Gente da Serra (2) - Dona Ana e Seu Clarindo

Cruzamos a porteira da propriedade Brioschi quando rodávamos meio sem rumo pelas estradas à procura de estabelecimentos abertos em 1º de janeiro, dia bem ingrato para se fazer turismo. À frente das casas, numa cancha improvisada na rua de terra batida, um grupo de pessoas jogava bocha. Quase demos meia volta, constrangidos por atrapalhar o lazer da família em pleno feriado. Antes que escapássemos, um senhor interrompeu a partida e veio nos receber. Informou que a lojinha estava fechada, mas que teriam muito prazer em abri-la para que conhecêssemos o café gourmet, os laticínios e os defumados produzidos artesanalmente ali mesmo no sítio. E convocou a esposa para acompanhá-lo na tarefa. 

Pelo acolhimento do casal, descendentes de imigrantes italianos, e com a conversa correndo solta, o nosso embaraço foi dando lugar a uma sensação de bem estar. A mim, mais que isso, senti uma empatia pela história de vida de Seu Clarindo e Dona Ana - a lida no campo, as dificuldades de se manterem com os recursos da produção rural, sem, no entanto, perder a alegria e o vínculo com a família. Ele, pele clara e faces muito coradas, lembrou-me meu avô Peixoto, fazendeiro e contador de causos, gentil e carinhoso como o Seu Clarindo. Quando comentei sobre esta semelhança, a voz ficou engasgada, mas me recuperei logo com outra provinha do defumado socol que a senhora me serviu.

Dona Ana, setenta e tantos anos, tem a força das matriarcas. Foi dela a ideia de, há mais de 2 décadas, inscrever a propriedade num programa de agroturismo, criado no município como alternativa de renda para os produtores rurais. Hoje, ainda trabalha duro nos cuidados da casa e na linha de produção, mas reserva as suas tardes para uma de suas mais queridas atividades – o contato com os turistas. Ela aprecia a companhia e a prosa com os visitantes, e, embora tenha um jeito mais tímido que o marido, foi nos contando sobre suas preferências políticas, sobre filhos e netos, preocupações e orgulhos. Reconheci nela o que vivenciei em minha própria família - a determinação e o poder das mulheres simples do interior. Convivi com tias queridas que resistiram às dificuldades da vida isolada e com poucos recursos, mantendo o afeto e a generosidade, vibrando com a visita de parentes e amigos. As minhas “Anas” chamavam-se Inah, Odette, Alice, Olinda, Honorina, Yá... 

Hora das despedidas, abraços apertados, palavras de agradecimento. Reunimos o café e os defumados comprados e recolocamos o pé na estrada. Circulando por lá, encontramos outras famílias tradicionais trabalhando juntas, além de nascidos na serra que, após um período de "exílio", voltaram a se estabelecer na região - como o Maurício, do Sítio dos Palmitos. Florescem pequenos negócios de produtos orgânicos e naturais, plantação de flores, apiário e cervejaria, tornando as localidades de Domingos Martins e Venda Nova do Imigrante destinos bacanas pra passear e viver.
imagem da Internet - www.folhavitoria.com.br



Em tempo: não choro mais pelo Patinho Feio! Com exceção da situação precária das rodovias (também no estado do Rio de Janeiro), a viagem pelo Espírito Santo foi de muito riso e alegria.

Para ver imagens dos locais visitados, clique em Galeria de Fotos - Serra Capixaba
--------------------------------------------
Na Rede:

domingo, 21 de janeiro de 2018

Gente da Serra (1) - Tiago

Ele é ainda jovem, pela casa dos 30 anos. Filho da terra, cresceu e estudou em Domingos Martins. Já foi guia turístico nas trilhas do Parque Estadual da Pedra Azul, mas com a autorização de passeios independentes, sem necessidade de condutor, a clientela diminuiu e ele migrou para a área da segurança. Agora, faz plantão na entrada principal da reserva, principalmente fora dos horários de funcionamento regular. Foi lá que nos encontramos, no dia 31 de dezembro, depois de subirmos a pé uma estradinha de terra, com sol forte e ataque de mutucas, para descobrir que, por causa dos feriados de final de ano, o parque estava fechado. Mas Tiago salvou a pátria! Com conversa fácil, bom humor e gentileza, contou-nos inúmeros causos sobre a colonização e também sobre a grande formação rochosa de cor azulada que dá nome ao parque. 

A história que mais gostei não foi inventada por ele, já faz parte do folclore da região, mas Tiago a contou tão compenetrado que, no início, até pensei ser verdade.

- Já faz muito tempo, mas uma grande batalha se deu aqui. Um menino, com sua espingarda, caçou uma onça feroz. A luta foi tão sangrenta que suas marcas ficaram inscritas na pedra e ainda hoje estão visíveis – narrou com expressão séria e ênfases para sublinhar o suspense.

- Vem cá, olha daqui – ele nos guiou a um descampado à frente da entrada. Tá vendo os buracos mais à esquerda na rocha? São as pegadas do menino e do bichão. A onça se debateu e estrebuchou diante da morte, por isso as ranhuras e a mancha de sangue ali na base. E o lagarto, coitado, que vinha subindo a pedra na hora em que se deu a peleja, de tão assustado, petrificou-se pelo medo!
Acompanhamos cada lance da narrativa, e rimos muito, e puxamos mais assunto com o Tiago. Por fim, inebriados, pegamos a estradinha de volta, até com mais ânimo pra enfrentar o sol e as mutucas. 

Foi muito bom perceber que o desenvolvimento econômico da serra capixaba tem permitido que jovens, como o nosso anfitrião, não precisem abandonar suas pequenas cidades para buscar trabalho e sustento. Encontramos rapazes e moças atuando em restaurantes, bares e pousadas, ou empreendendo em atividades de ecoturismo – como o Ricardo, do Ecoparque Pedra Azul. Tomara que eles continuem por lá, recebendo os visitantes com competência e carinho, o que, num círculo virtuoso, acaba trazendo novos turistas e mais crescimento.
 --------------------------------------------
Na Rede: