domingo, 10 de maio de 2020

Portas e Janelas

Para que servem as portas neste estranho ano de 2020? Para que servem estas estruturas que se postam altivas nos limiares das moradias? Abandonadas à própria sorte, rangem esganiçadas nas poucas oportunidade de uso. Dobradiças enferrujadas pela imobilidade, as portas corroem-se de inveja das exibidas janelas. 

Sim, as janelas, estrelas da pandemia, protagonistas no nosso filme-desastre diário. De meros retângulos de contato entre o interior e o exterior, elas transformaram-se em torres de observação para, em seguida, alcançarem o status de ágora democrática. Entre as janelas das residências vizinhas, pairando no ar, no vazio, surge uma teia de relações, um espaço de comunicação entre os confinados. Aplausos, breves diálogos, apresentações musicais, panelaços - uma nova e efetiva linguagem vai se construindo. 

Coloco-me à frente da janela da sala do meu apartamento e debruço-me sobre o parapeito. Sinto-me como Ana Maria, retratada por Dalí ao contemplar tranquilamente a paisagem, embora eu não veja o mar nem a linha de morrotes ao longe. Ponho-me ali com a mesma atitude da mulher e acompanho, em linha vertical, o caule irrequieto da amendoeira subindo, subindo, emergindo do seu cubículo na calçada. A partir da altura do andar em que me encontro, os galhos se abrem em forma abaulada, esparramando os buquês de folhas verdes em todas as direções. Comportamento semelhante adota a árvore da mesma família que se posta na calçada do outro lado da rua, um pouco à direita da minha torre. Há anos as duas amendoeiras têm sido minhas companheiras silenciosas, tecendo, folha por folha, uma cortina vegetal que me protege, refresca, alegra. Mas, agora, não me servem as amendoeiras, a cortina verde, a casa indevassável. Quero ver a linha irregular de prédios, examinar as janelas mais longínquas, penetrar cuidadosamente nas habitações alheias como se fosse me banhar num mar com ondas agitadas. Quero me comunicar, signos linguísticos contemporâneos lançados no espaço vazio da esquina. As árvores me impedem, seguem sua sabedoria inabalável. 
Insisto. Estico braços, afasto ramos, busco aqui e ali o melhor ângulo, até que encontro uma abertura no tecido de folhas que me permite ver a varanda do apartamento bem em frente à minha janela. Descubro lá as marcas do isolamento forçado. Em meio aos móveis costumeiros, objetos escapados dos ambientes internos perseguem o sol e o vento fresco: roupas secando em varais improvisados, brinquedos infantis pelo chão, uma profusão de vasos de flores empilhados na mesinha lateral. 

O espanto vem em seguida, aperto os olhos para me certificar de que são quatro as gaiolas penduradas na parede da varanda. Percebo o alvoroço no interior delas. Afasto-me de meu posto, pensando nas lições que portas e janelas podem nos dar nestes tempos de privação. É quando ouço os pássaros cativos cantarem descrentes na varanda do apartamento em frente.

Ilustração: Angela Cotrim, grafite e giz pastel sobre papel, 2020
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Texto produzido para o curso Autoficção: Oficina de Memórias, da Estação das Letras, coordenado pela professora Ana Letícia Leal.

Na Rede:
Quadro de Salvador Dalí citado na crônica: Figura na Janela