domingo, 22 de outubro de 2017

Chattanooga Choo-Choo

De Atlanta a Chattanooga são 2 horas de viagem pela Interstate 75, uma rodovia larga, com muitas faixas de rolagem (em alguns trechos são 6 faixas, mas nunca menos de 3), asfalto bem cuidado e, maravilha!, sem cobrança de pedágio - fato raro em outros estados. Uma fileira de árvores se alinha às suas margens, o que deixa o trajeto bem mais agradável e fresco, mas, imagino, que este anteparo verde também seja importante como proteção acústica para os moradores das redondezas.

As ótimas condições da estrada garantem a segurança de todos e ajudam a escoar o pesado tráfego de caminhões. É impressionante a quantidade de imensos, e lindos, veículos circulando: cabines com design arrojado, cores vibrantes, carrocerias adaptadas às mais variadas mercadorias. O fenômeno da onipresença dos caminhões se repetiu em todas as rodovias em que transitamos, uma demonstração da importância do transporte sobre rodas para a economia do país.
Já se vão décadas em que é possível chegar rapidamente a Chattanooga de automóvel, mas, no final do século 19, a cidade fez parte de um importante eixo ferroviário, ligando o norte ao sul do país. O primeiro trem de passageiros a circular no caminho de ferro foi apelidado de Chattanooga Choo-Choo, numa alusão ao nome da cidade e ao apito da Maria Fumaça. A antiga estação, reformada, virou ponto turístico, com museu, hotel e casa de shows. Quem quiser uma hospedagem temática pode reservar uma suíte em um dos vagões estacionados nas plataformas.
Como preferimos os B&B, escolhemos uma pousada nas montanhas que ladeiam a cidade. Além de ser um lugar lindo - com bosques, casas incríveis (morro de inveja das casas americanas) e caminhos bucólicos - Lookout Mountain reúne algumas das principais atrações da região. 
Fomos a pé do Chanticleer Inn (nosso hotelzinho) a Rock City – um parque pedregoso, com trilhas, vegetação natural e belas vistas do vale de Chattanooga. Não chega a ser uma cidade de pedras, como o nome sugere, mas os proprietários valorizaram a experiência incrementando os espaços com sinalização e informação adequadas, e criando um clima especial para cada canto visitado. Fadas, gnomos e bandeiras, além de veadinhos e pássaros, coabitam no parque, num tom meio kitsch, mas divertido

Outra atração da nossa vizinhança é o The Incline, um plano muuuito inclinado em que dois vagões puxados por cabos, num sistema de peso e contrapeso, fazem o percurso da base ao cume da montanha. Os últimos metros da subida trazem emoção à viagem tal a posição quase vertical do terreno. É até difícil ficar de pé e sair do vagão no ponto de desembarque. A estação é pequenina, mas, enquanto esperávamos a hora da volta, visitamos a casa de máquinas e acompanhamos a história do local por uma exposição fotográfica.
O passeio que mais fez sucesso na família, no entanto, foi a visita a Ruby Falls – uma cachoeira subterrânea, a 340 metros de profundidade. Mais uma vez constatei o tino dos americanos para os negócios. Um elevador leva confortavelmente os visitantes às profundezas, os guias são afiados nas informações sobre os pioneiros na descoberta das cavernas, luzes coloridas destacam as formações nas rochas ao longo do percurso e ainda tem a performance do “grand finale”. Após um suspense no escuro dentro de uma das cavernas, luzes são acesas e ooh!! é possível ver a bela queda d’água.
Descendo o morro, chegamos à área urbana, espalhada em torno das curvas do rio Tennessee. Em cartazes distribuídos pelo centro, se lê: City of Chattanooga: Clean, Green & Pet Friendly! Pelo que vimos, não é propaganda enganosa – há estímulo ao uso de bicicletas e carros elétricos; as regras para os proprietários de animais de estimação são bem definidas; tem muita gente jovem se exercitando nas ruas (apesar do calor infernal que fazia na tarde em que caminhamos por lá). Museus, galerias e centros de cultura estão reunidos em um bairro inteirinho voltado para as artes, e ainda encontramos restaurantes e bares aos montes.
Antes da viagem, pelo que pesquisei, eu já esperava gostar da cidade, mas, conhecendo a região, ao vivo e a cores, eu simplesmente adorei! 
Deu vontade de ficar por lá! Dá vontade de voltar! Um dia, talvez, quem sabe?!

Para ver outras imagens, clique em Galeria de Fotos
Para saber mais sobre a viagem, leia também: Entre Luz e Sombra;
Alegria e Música em NashvilleEnfim, o Eclipse e Great Smoky Mountains
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Na Rede:
  • Chattanooga Choo-Choo é também o nome de uma canção sobre uma viagem de trem. Gravada pela orquestra de Glenn Miller para o filme Sun Valley Serenade, fez muito sucesso na década de 1940. O link abaixo mostra a cena do musical, com direito a show da Big Band e incrível número de sapateado.  https://www.youtube.com/watch?v=V2aj0zhXlLA
  • E tem também a versão da música em português no filme Springtime in the Rockies, interpretada por Carmem Mirandahttps://www.youtube.com/watch?v=d56jNWozP6k

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Nós e as Crianças

Aqui dentro, estamos a salvo. A maldade só existe lá fora e, se ela vier, terá que bater à nossa porta. Para nos proteger, basta cuidar das entradas, do entorno, das fronteiras. Redobramos a atenção no portão, suspendemos o muro, convocamos a presença da patrulhinha; afinal o bairro anda tão violento ultimamente. Um conjunto de câmeras de vigilância já foi encomendado, mas ainda não ficou decidido se os passeios serão suspensos. Será uma boa ideia circularmos, nós e as crianças, no mundo da maldade que existe lá fora?

Melhor ficarmos no interior desta casa. Aqui reina a força de vida, um ciclo dinâmico e complementar de risos e choros, acertos e discórdias, afeto e crescimento. Convivendo dia a dia, nos olhamos nos olhos, nós e as crianças. O desejo de morte só viria de quem não nos conhece. Quem já nos olhou nos olhos, há de nos querer o bem. 

E seguimos crédulos e confiantes. Somos fortes e temos nosso quinhão de felicidade, nós e as crianças. Aqui dentro, estamos a salvo. Estamos? Estávamos! Até outro dia, quando a lógica se quebrou. A morte premeditada encontrou lugar nas entranhas de num espaço tão igual ao nosso, pelas mãos de quem se sabia o nome, e se reconhecia a face. Fogo e dor ao norte de Minas Gerais. Aqui, onde estávamos a salvo, cresce o espanto e morre a ilusão, escancaram-se os limites protetores. O que será de nós e das crianças?

Ilustração - Crianças Brincando - Portinari - 1960

terça-feira, 3 de outubro de 2017

Tiros em Las Vegas

Para dar continuidade aos relatos de viagem, que prometi na publicação passada, este texto deveria ser sobre Chattanooga, a primeira cidade visitada no Tennessee. Mas, de repente, sem nenhum aviso, a realidade se sobrepôs ao meu desejo. Acordei ontem com a notícia do atentado em Las Vegas durante um show de música country: 59 mortos e mais de 500 feridos!

As imagens divulgadas na tevê me impressionaram pela desproporção do poder do atirador – protegido no alto do prédio e com armamento pesado – em relação à posição indefesa do público, usufruindo do momento em campo aberto. Correria, caos, medo e morte em mais um massacre nos Estados Unidos. Como nos eventos anteriores, em que pessoas foram atingidas em atividades cotidianas, e diante da impossibilidade de compreender a lógica (ou loucura) dos matadores, voltou com força o debate sobre o controle da venda de armas no país.

A salvo na minha sala de estar, fiquei me perguntando se, para se defender, como prevê a constituição e desejam muitos americanos, a população civil precisa de fuzis e metralhadoras de alto poder letal que, nestes massacres, têm sido usados justamente contra a tão almejada segurança individual. 

Ao mesmo tempo, tentei me lembrar de momentos da viagem em que tivéssemos esbarrado na cultura das armas, em sinais do apreço do povo por revólveres e afins. Concluí que só em duas situações nos deparamos com o tema, mas pela via da restrição ao uso. Tanto na visita guiada à destilaria Jack Daniel, quanto no teatro Grand Ole Opry, fomos avisados que armas não seriam aceitas no interior dos estabelecimentos. Isso apesar da viagem ter se concentrado no sul do país, região tradicionalmente mais conservadora e republicana. Tennessee, Carolina do Sul e Geórgia elegeram Trump com margem folgada de votos.

É claro que uma estada curta, como turista, não me faz uma expert na sociedade americana, só me credencia a falar a partir do meu ponto de vista, uma abordagem parcial e intransferível. Feita a ressalva, digo que esta foi uma das viagens em que me senti mais segura e tranquila ao circular por ruas, parques, casas de shows e bares, de dia ou à noite. Não vi ninguém portando armas, não ouvi tiros nas ruas, nem discussões ou nervos à flor da pele. Ao contrário, a população usufrui de espaços públicos com gentileza e organização, as casas são ajardinadas, sem grades ou muros, e as mochilas circulam tranquilamente nas costas de seus donos. No dia do eclipse, no parque repleto de espectadores de todo o país, ninguém parecia preocupado com seus pertences ou com os equipamentos (binóculos, máquinas fotográficas, telescópios) caríssimos. Uma paz invejável!

Paz que também me invadiu quando, já anoitecendo no Centennial Park, em Nashville, encontramos um senhor tocando o seu instrumento à beira do lago. O som do violoncelo transformou-se, para mim, na trilha sonora da alegria de viver. Torço para que, mesmo diante da maldade e da morte, o povo americano (re)encontre o seu hino de esperança e felicidade.