segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Amélia

A distância é pequena. Amélia costuma contar os passos desde a saída da estação do Metrô: 46, 47, 48, 49, 50... Pronto, aperta o interfone, o porteiro responde destravando a porta. Cumprimentam-se brevemente. Vencendo os passos seguintes e os degraus da portaria, logo estará em casa. Bem mais rápido e prático do que morar no Grajaú, onde ela perdia as contas lá pelo segundo quarteirão depois de descer do ônibus. 

Revira a bolsa à procura do chaveiro entre ampolas de vitamina C e sachês de colágeno escapulidos da nécessaire. “Alexa, acenda as lâmpadas”, ela pede enquanto vai se livrando do blazer e dos saltos. A caixinha arredondada, muito delicada e bem acabada, desperta de seu sono; linhas coloridas dançam na circunferência superior num vai e vem alegre. Luzes iluminam o apartamento. Amélia circula entre os cômodos, recolhe a toalha de banho esquecida na cama, coloca na pia a xícara do café da manhã.
Senta-se no sofá branco - antigo desejo de consumo realizado pela designer contratada na última reforma - puxa o assento retrátil e descansa as pernas sobre ele. Apoia a cabeça na almofada, fecha os olhos por um momento. O silêncio da casa a incomoda. “Alexa, toca a playlist do Queen.” A casa se enche com o som da banda, e Amélia sorri. Ela ama essa satisfação automática. Sim, Alexa a tinha ouvido: sem delongas, sem cobranças, sem lamúrias. O céu! 

Vai dançando até o quarto, radio ga ga, radio goo goo, a procura do smartphone. Teria ficado no escritório? Um breve franzir de testa é substituído pela expiração aliviada; o aparelho largado ao lado da sacola da Le Lis Blanc. Dá uma conferida no vestido azul de renda, saia evasê, decote de ombro a ombro, tão sexy! Uma pequena fortuna, mas terá sido um bom investimento. Rodopia diante do espelho, oh, won't you take me home tonight

De volta ao sofá, prepara-se para o ritual de todas as noites. Busca, na tela, o atalho com a pequena chama branca e abre o aplicativo. Os dedos não obedecem à sua ansiedade. Segue-se uma pausa para encontrar os óculos, e, em seguida, a visão da caixa de mensagens sem novidades. Checa o wifi, reinicia o roteador, a internet no bairro anda péssima. Mas nada muda naquele país das possibilidades. Aliás, há dois meses vive de muitas deslizadas e poucos matches. Já seguiu todas as orientações para ser feliz no Tinder – duas revisões no texto da descrição, a foto do perfil é de cinco anos atrás, triplicou o raio de busca de usuários compatíveis. Até considerou rever a faixa etária desejada - dos 18 aos 75 anos, talvez? “Ridícula! Que coisa ridícula!”, fala, ao perceber o fiasco de tudo aquilo. Larga o celular na mesinha de centro. Se ao menos fosse uma pessoa autoconfiante... Autoconfiante como Fred Mercury, um indivíduo feio e dentuço que sabia ser sensual. I was born to take care of you, every single day of my life, cantarola baixinho Amélia, com ele, para ele. 

Não devia ter cedido aos conselhos das amigas, recrimina-se. Não tem vocação para relacionamentos virtuais, se expor assim, sem nenhum controle! Dá preguiça e medo ao mesmo tempo. Preguiça de começar uma conversa do zero: contar das viagens, da família e do trabalho; explicar mal entendidos; fazer graça, quando o humor não é sua praia; tentar ser interessante sem saber o que o outro considera interessante. E o medo de encontrar o serial killer mais próximo, tantas histórias de violência e golpes contra mulheres, e elas ali, impotentes. Teria ficado na zona de conforto, não fosse a exigência do coração solitário. Love of my life, love of my life, cadê você? 

Deita-se no sofá, dobra as pernas, aconchega-se em seus próprios braços. “Alexa, estou me sentindo muito só!”, confidencia meio sem pensar. Num instante, a música se cala, o círculo colorido volta a se agitar. E uma voz suave lhe responde: “Lamento saber disto. Assista a um filme engraçado ou tome um bom vinho”. 

Embora o timbre de Alexa a conforte, Amélia aguarda ansiosamente a voz de Samuel L. Jackson, uma promessa da Amazon por módicos noventa e nove centavos de dólar. É pena, ela suspira, que não se possa ter tudo. A novidade só ficaria perfeita se o corpo do novo assistente virtual tivesse uma forma máscula: um cubo de arestas solenes, moldado em bronze escuro. Ela o colocaria em lugar de destaque, um pedestal bem no meio da sala. O céu! 

“Alexa, um vinho cairia bem. Hoje tem alguma comédia no Sky? Mas, por favor, nada de comédias românticas, você já sabe que não me fazem bem.” A TV da sala se ilumina, as imagens irrequietas a distraem, até a fazem sorrir. O interfone não demora a tocar, Amélia recebe o Malbec: alto teor alcoólico, aquele mesmo que a havia interessado dias antes no site do Evino. 

No fim da noite, bem ao lado do celular sobre a mesinha de centro, descansam duas taças de vinho. O céu!

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  • A primeira versão de Amélia está completando hoje um ano de vida. Como presente de aniversário para a minha personagem, revisei o texto para aproximá-lo do gênero Conto. Hoje publico essa nova Amélia, com mais carne e osso, e que foi trabalhada na Oficina de Contos, da Estação das Letras, coordenada por João Paulo Vaz.
  • Completando o renascimento de Amélia, Eline de Medeiros criou uma nova ilustração.

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Futuro do pretérito

Não sei por que ainda me assombro. É a mesma cor exagerada, são os mesmos cachos que se repetem há décadas. Todo mês de julho. Desde quando me sento aqui apreciando o caramanchão do bouganville? Desde que pude dar os meus primeiros passos? Não, não; devo ter precisado de mais tempo para me livrar dos braços dos adultos e ter vontade própria, se bem que vontade própria mesmo não tenho até hoje, e também não sei se alguém é capaz de tê-la. A vontade própria se desmancha na propriedade da vontade dos outros, numa cadeia sem fim de desejos e resignações. Sorte tem o bouganville, exerce o seu direito inalienável e cíclico de ser. Como concorrente, apenas a moita de alamandas que, vez em quando, em seu amarelo pálido, se arvora em rival. Patética! Contra o solferino dos cachos em julho não há ser vegetal, nem animal, a bem dizer nem humano, que lhe faça frente. Se me ouvisse agora, Maíra riria, achando essa minha afirmação um exagero, menos, mãe, menos... 

Riria... Riríamos... 

Ela, cheia de convicções, nunca se admirou com folhas ou flores; sempre preferiu os pelos e as peles, as patas e as asas; tudo que se movesse por vontade própria. E eu? Mãe insegura, a não ser por uma única certeza: por mais desbotada que fosse a minha vida, raios de luz, como um arco-íris, se lançariam ao futuro, colorindo da frente para trás o meu caminho. Uma das pontas seria a minha existência antes da maternidade, e a outra, o destino de Maíra, seus atos, seus passos; até que também ela lançasse adiante a minha extremidade do arco-íris, e assim seria em continuidade, num movimento perfeito e permanente. 

Seria... Seríamos... 

Certezas costumam se esvanecer assim, de súbito, com um telefonema, ou uma mensagem de texto. Ninguém pensaria em cores, em potes de ouro prometidos, numa noite escura e opressora. Eu, sim; pensei em meio ao breu, em meio aos ferros retorcidos e às manchas de sangue. Pensei no meu arco lançado ao futuro, futuro do pretérito, cambaleando no céu sem elegância, e desabando bem longe do pé do bouganville. Daquele momento em diante, faltaria um desenho no céu. Sofri por mim, pela minha finitude, pela possibilidade morta de me perpetuar neste mundo. Eu acabei ali. 

Acabei. Acabamos.


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Texto finalizado na Oficina de Contos, da Estação das Letras, coordenada por João Paulo Vaz.

domingo, 2 de agosto de 2020

O Caso do Zé Armênio

Vem, minha filha, senta aqui pertinho de mim, mas antes chama os meninos, que eu quero contar uma história que aconteceu há muito tempo, eu ainda não era nascida, nem a minha mãe. Foi o meu bisavô que ouviu dizer sobre as aventuras de Zé Armênio, e contou pro meu avô, que contou pra mim quando eu era criança. A gente sentava em volta da fogueira e ele dizia: hoje eu vou contar a história do escravo mais tinhoso e retinto da fazenda.
Olha, agora faz de conta que eu acendi o fogo aqui bem no meio da sala, está ficando mais quente, sentiu? Foi assim que o menino nasceu, junto ao crepitar do carvão em uma noite escura, numa beira de rio perto da senzala. E foi o bebê escapulir da barriga da mãe, arregalar os olhos e começar a berrar um choro dos infernos. O pai, aflito com o chororô (pois se o sinhô acordasse...), banhou o menino nas águas do rio pra ele se acalmar. Dizem que foi a correnteza mansa que operou o milagre e, ao mesmo tempo em que o menino calou, sentiu o gosto pelo livre viver, sem que nenhum ferro o prendesse, sem que nenhuma gente o alcançasse, sem que nenhum tempo o escravizasse. 

Zé Armênio cresceu solto pelas terras da fazenda e ninguém podia com suas diabrites. Mamava nas cabras; subia até o último galho das árvores; usava estilingue pra azucrinar os cavalos; escondia a enxada e a foice dos trabalhadores – era arteiro como o próprio Saci-Pererê, só que completo das pernas. E também tinha a esperteza do Curupira, sumia das vistas do capataz que vivia atordoado atrás dos seus rastros. E nunca, nunquinha, chegou a trabalhar, nem na mais simples tarefa. 

Quando o rapaz fez treze anos, começou a se sentir preso naquele território cercado da fazenda. Abriu a porteira e botou o pé no mundo. Os pais não estranharam o sumiço do filho, com certeza ele ouvira o chamado da correnteza que o batizara. Souberam que ele andava pelas terras vizinhas como mascate, vendendo panelas, cortes de tecido e sabão em barra. Mas muita gente dizia que, só pra se divertir, roubava de uns e vendia pra outros, e gastava todo o dinheiro na taberna mais próxima. Foi neste tempo de atrevimento que conheceu as três mocinhas com quem se amasiou, tendo tido casa com cada uma delas, e gerado treze filhos, todos devidamente batizados nas águas dos rios da região. E os filhos, como o pai, seguiram livres por aquelas terras. 

Os anos correram e Zé Armênio, adiantado na idade, começou a se sentir aprisionado naquele corpo de homem velho. Entendeu que, desta vez, de nada ia adiantar abrir a porteira e sair pelo mundo. Resolveu, então, encurtar o mundo, condensar o mundo no seu menor tamanho. Entocou-se numa caverna e lá passou a viver sem que nenhum ferro o prendesse, sem que nenhuma gente o alcançasse, sem que nenhum tempo o escravizasse. 

Homem e caverna se entrelaçaram de tal modo que já não se reconheciam em separado. E embora Zé Armênio benquisesse cada um de seus dias, em qualquer estação do ano, eram as noites que o faziam sentir-se em total harmonia com a sua natureza de bicho livre. Acostumara-se ao escuro: distinguia as sombras, ouvia a presença dos morcegos, farejava o orvalho que adentrava pela boca de pedra. Tateava as paredes e as considerava como seu próprio corpo. Sabia que, em meio às trevas, ninguém seria capaz de invadir a casa. A exceção eram as noites de lua cheia, aquele imenso farol desnudando suas entranhas. 

Foi numa dessas noites que ele pressentiu o perigo: um leve deslocar dos ares, talvez um bater de asas; um cheiro ácido que desconhecia orvalho; um vulto claro-escuro a espreitar o espaço. Zé Armênio não demorou a reconhecer a feroz inimiga de sua liberdade e, apavorado, se encolheu num canto. Um formigamento estranho lhe alcançou os pés, subiu-lhe devagar as pernas, tornou-se quente ao encontrar o ventre, ao espalhar-se às costas. O homem levantou-se num ímpeto, mas se viu sem pés, sem pernas... e sem ar. Uma sufocação tomou-lhe o peito; cambaleou entre as pedras e caiu de borco. Chegou a imaginar os verdes e os amarelos das plantações, vislumbrou os rebanhos brancos e marrons, mas, por fim, as cores foram se perdendo, uma a uma, no sumidouro da inconsciência. Zé Armênio quedou-se inerte, flácido, e deixou-se levar pelo vulto claro-escuro. 

Naquela noite, houve quem jurasse ter passado perto da caverna e visto a morte, tal qual uma pietá macabra, carregando o velho em direção ao rio. E que os dois desapareceram tragados pelo clarão de uma das luas mais lindas já vistas por aquelas bandas. 

O meu avô sempre terminava a história pedindo pra gente olhar em volta, além do clarão da fogueira, pra descobrir os rastros do Zé Armênio, pois, com certeza, o homem conseguira se livrar da morte e andava livre pelas matas, amigo do Saci-Pererê, comparsa do Curupira. 

Então, vem, minha filha, segura na mão dos meninos e vamos ao encalço do escravo mais esperto da fazenda. Faz de conta que a gente achou.

Fogueira - Foto de Clara Pereira 

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Exercício de escrita do curso Texto Puxa Texto
da Estação das Letras, coordenado pelo professor Juva Batella.

segunda-feira, 6 de julho de 2020

Deve ter sido

Deve ter sido a canção do Gil que perturbou a faxina na cozinha. Mirna estava ocupada com produtos e técnicas de limpeza, resolvera testar a sugestão de Rosa: ao invés da vassoura, usar o aspirador em todos os cômodos da casa. Funcionara – muito mais prático que o abaixa-levanta para alinhar a pá de lixo e o pique-pega com os arredios tufos de poeira. Os versos da canção a fizeram recordar o restante da conversa com a amiga na noite anterior. Falaram-se por WhatsApp sobre as descobertas domésticas da quarentena, a falta que as diaristas fazem, a compulsão de uma pelo chocolate, o vinho que seduzia a outra. Ao final, concluíram: “Tá difícil, né, amiga?”, “É, tá difícil pra caralho. Pra ca-ra-lho!”.

Deve ter sido o palavrão, ou a ênfase, que colocou Mirna em alerta. Rosa sempre fora educada e contida nas revelações. Observou-a pela câmera do celular: cabelos desalinhados, vestido estampado de malha retirado do fundo do armário, nenhuma bijuteria - o modelito típico das mulheres em isolamento social, não fossem os olhos irrequietos e o pescoço virando repetidas vezes para a porta, como se controlasse a entrada de alguém. Mirna decidiu ser direta e perguntar logo sobre o casamento com Daniel. Tinha presenciado tantas brigas durante o Carnaval...

Deve ter sido a franqueza da pergunta que desatou em Rosa a urgência da resposta: sentia-se sozinha, mais velha, mais flácida, menos amada; sentia-se tão cansada quanto inútil; sentia-se uma ingrata já que o marido até ajudava nas tarefas, coitado, só não gostava de limpar o banheiro ou lavar as panelas. Contou como abrira mão das lives da Teresa Cristina para acompanhar Daniel nas maratonas do Netflix; e de como restringira suas aulas de yoga pelo YouTube para que a música zen e as mensagens relaxantes não o irritassem durante o home office.

Deve ter sido a conexão ruim que fez a conversa travar justamente ali. Mirna ainda tentou uma nova ligação, mas Rosa teclou que Daniel tinha chegado. Falariam no dia seguinte, sem falta. Mirna completou: “Se cuida! Se precisar, me liga”.

Deve ter sido a voz rouca do Gil se espalhando pela cozinha – o seu amor, ame-o e deixe-o ser o que ele é, ser o que ele é - que interrompeu os devaneios de Mirna, para, em seguida, ouvir o interfone. Era o porteiro, avisando que um policial queria falar com ela. “É sobre uma mulher, Rosa Junqueira, a senhora conhece?”

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Texto produzido para o curso Texto Puxa Texto, da Estação das Letras, coordenado pelo professor Juva Batella.

Na Rede:
O Seu Amor, canção de Gilberto Gil. Clique abaixo para ouvir:

terça-feira, 16 de junho de 2020

Eu, Izaltina de Almeida Guimarães Modesto

O meu nome soa pomposo, isso eu sei. Não duvido nem quando estou um pouco fora de mim, como agora, num limbo sem tempo nem lugar. Gosto de repeti-lo devagar e bem baixinho. Falo comigo mesma, pois já não há ninguém a impressionar com sobrenomes de fazendeiros de outros tempos. Quem se importaria com a viúva do filho do barão do café quando já se vão mais de sessenta anos que o ouro verde se derramou? Acaricio os sons do meu nome. As sílabas ostentosas escandidas em cantilena me fazem bem, é como rezar um terço, repetir uma oração pedindo proteção, e coragem.

O galo no terreiro já começou a função, empurrando com seu canto as galinhas para fora do poleiro, como em todos os dias. Devo seguir os sinais da natureza e levantar-me da cama, embora hoje desejasse uma trégua, algumas horas apenas de descanso e devaneio. Raios de sol entram pelos vidros da janela e pelas frestas da madeira envelhecida, combinam-se com os grãos de poeira que dançam no ar. Eles dançam, eu continuo imóvel. 

Desenhados com o pó das memórias, bailam os móveis de palhinha da sala de estar, o retrato do barão, os castiçais, a mesa de jantar. Chego a escutar o relógio batendo as horas, o rebuliço das crianças, o vaivém dos empregados, as rodas das carroças circulando do cafezal para o terreiro de secagem bem em frente à varanda principal. Lembranças que saltitam pelos espaços vazios do quarto. Mas de que me valem, hoje, as lembranças? Mudarão a penúria em que me encontro, a falta de esperança, esse vazio?
É triste ter que viver restrita à antiga ala de serviço, espremida nos cômodos adaptados à vida simples – alpendre; saleta e quarto; fogão a lenha instalado no quintal para não fumaçar a habitação. Seu Eleutério ficou de vir ver o telhado da casa-grande, me garantiu dar jeito nas cumeeiras corroídas pelo tempo e pelos cupins. Não deve haver remédio para aquela carcaça podre, mas me iludo. 

Nunca fui à escola, deve ser por isso que eu não entendo bem como cheguei nesta situação. A pobreza veio vindo pé ante pé, disfarçando as consequências, levando para longe um filho de cada vez, até que só me sobrasse Salomé. Eu e Salomé a calejar as mãos, eu e Salomé a empurrar a vida, silenciosamente. O que seria de mim não fosse a presença dela? E ainda que o Velho Titonho tenha decidido continuar na propriedade, trabalhando por casa e comida, o homem é de pouca valia, quase tão desgastado e desiludido quanto eu. 

Lanço mais um olhar para os raios de sol na janela, admiro o balé de poeira que já vai se dissipando, me viro na cama com cuidado para não prejudicar os costados. Percebo os sons da fazenda invadindo o aposento. Não se conformam com a minha desatenção, cobram a minha presença no curral, no galinheiro. Até as árvores do pomar andam a clamar por mim. Também pudera, é para hoje a encomenda de Sinhá Maria: sequilhos de araruta, compotas de goiaba e tabletes de doce de leite para os sobrinhos que chegam do Rio de Janeiro. 

Respiro fundo, reúno o que me resta de forças e levanto-me. Diante do pequeno oratório, ajoelho-me. Aperto os dedos - polegar e indicador acariciando as contas do terço -, e sigo repetindo a oração: i-zal-ti-na-de-al-mei-da-gui-ma-rães-mo-des-to; i-zal-ti-na-de-al-mei-da; gui-ma-rães-mo-des-to; gui-ma-rães-mo-des-to... Amém.

Ilustração: Angela Cotrim, aquarela e grafite sobre papel, 2020

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Texto finalizado no curso Texto Puxa Texto, da Estação das Letras, coordenado pelo professor Juva Batella.

domingo, 10 de maio de 2020

Portas e Janelas

Para que servem as portas neste estranho ano de 2020? Para que servem estas estruturas que se postam altivas nos limiares das moradias? Abandonadas à própria sorte, rangem esganiçadas nas poucas oportunidade de uso. Dobradiças enferrujadas pela imobilidade, as portas corroem-se de inveja das exibidas janelas. 

Sim, as janelas, estrelas da pandemia, protagonistas no nosso filme-desastre diário. De meros retângulos de contato entre o interior e o exterior, elas transformaram-se em torres de observação para, em seguida, alcançarem o status de ágora democrática. Entre as janelas das residências vizinhas, pairando no ar, no vazio, surge uma teia de relações, um espaço de comunicação entre os confinados. Aplausos, breves diálogos, apresentações musicais, panelaços - uma nova e efetiva linguagem vai se construindo. 

Coloco-me à frente da janela da sala do meu apartamento e debruço-me sobre o parapeito. Sinto-me como Ana Maria, retratada por Dalí ao contemplar tranquilamente a paisagem, embora eu não veja o mar nem a linha de morrotes ao longe. Ponho-me ali com a mesma atitude da mulher e acompanho, em linha vertical, o caule irrequieto da amendoeira subindo, subindo, emergindo do seu cubículo na calçada. A partir da altura do andar em que me encontro, os galhos se abrem em forma abaulada, esparramando os buquês de folhas verdes em todas as direções. Comportamento semelhante adota a árvore da mesma família que se posta na calçada do outro lado da rua, um pouco à direita da minha torre. Há anos as duas amendoeiras têm sido minhas companheiras silenciosas, tecendo, folha por folha, uma cortina vegetal que me protege, refresca, alegra. Mas, agora, não me servem as amendoeiras, a cortina verde, a casa indevassável. Quero ver a linha irregular de prédios, examinar as janelas mais longínquas, penetrar cuidadosamente nas habitações alheias como se fosse me banhar num mar com ondas agitadas. Quero me comunicar, signos linguísticos contemporâneos lançados no espaço vazio da esquina. As árvores me impedem, seguem sua sabedoria inabalável. 
Insisto. Estico braços, afasto ramos, busco aqui e ali o melhor ângulo, até que encontro uma abertura no tecido de folhas que me permite ver a varanda do apartamento bem em frente à minha janela. Descubro lá as marcas do isolamento forçado. Em meio aos móveis costumeiros, objetos escapados dos ambientes internos perseguem o sol e o vento fresco: roupas secando em varais improvisados, brinquedos infantis pelo chão, uma profusão de vasos de flores empilhados na mesinha lateral. 

O espanto vem em seguida, aperto os olhos para me certificar de que são quatro as gaiolas penduradas na parede da varanda. Percebo o alvoroço no interior delas. Afasto-me de meu posto, pensando nas lições que portas e janelas podem nos dar nestes tempos de privação. É quando ouço os pássaros cativos cantarem descrentes na varanda do apartamento em frente.

Ilustração: Angela Cotrim, grafite e giz pastel sobre papel, 2020
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Texto produzido para o curso Autoficção: Oficina de Memórias, da Estação das Letras, coordenado pela professora Ana Letícia Leal.

Na Rede:
Quadro de Salvador Dalí citado na crônica: Figura na Janela  

segunda-feira, 27 de abril de 2020

O Quarto das Tias

Psiu! Ei, você aí! É, você mesma, menina! 
Venha cá, eu quero te contar uma história que habita a minha memória há tempos. É uma história feita de imagens animadas, como se fossem vídeos bem curtinhos e embaralhados. Para ela virar uma história de verdade, que tenha pé e cabeça, e seja boa de ouvir, preciso emendar as imagens com palavras. As palavras são como fios coloridos de lã, elas tecem memórias e criam enredos tão belos e necessários como sapatinhos de tricô ou mantas de crochê. Sei que você, como eu, é apaixonada pelas palavras. Uma tagarela desde pequenina, as mãos repletas de novelos imaginários. Ajude-me, então, a montar o tear das ideias e a entrelaçar todos os sentidos que pudermos imaginar. E a minha história vai se transformar num tapete multifacetado e completo.

A história que quero te contar aconteceu quando eu ainda era criança, devia ter mais ou menos a idade que você tem agora, e costumava passar férias na fazenda do meu avô. Ele morava lá com duas irmãs, os três trabalhavam muito pra manter tudo funcionando: a casa, o curral, a lavoura, o pomar, o galinheiro.

Eu gostava de visitar o quarto em que as minhas tias dormiam, um espaço pequeno e simples. Era pra lá que eu corria pra pedir alguma coisa: um biscoito, um carinho, um conselho. Era pra lá que eu ia quando queria descansar numa cama macia e cheirosa enquanto ouvia os causos da família que elas sabiam tão bem contar.

Uma tarde, pretendia encontrar as tias para uma conversa, mas elas já estavam ocupadas na cozinha. Saí pelo corredor com a intenção de voltar a brincar no terreiro, mas, no caminho, notei algo muito estranho: a porta do cômodo seguinte ao delas estava entreaberta. Aquele era um quarto sempre trancado, praticamente proibido para os habitantes da fazenda, menos pras minhas tias, claro. Elas se revezavam no controle do aposento, e sempre andavam com a chave presa na cintura. Criança nenhuma entrara lá. Nunca.

Fiquei curiosa, muito curiosa, curiosíssima! Disfarcei, fingindo estar amarrando o cadarço do tênis, e olhei em volta. Ninguém! Fui entrando devagar no compartimento desconhecido e pouco iluminado. As janelas, venezianas de madeira verde e vidro na parte superior, estavam fechadas. Aos poucos, fui percebendo o espaço quase vazio. Dei mais uns passos... e vi, de relance, uma imagem na parede. Tomei um baita susto e por pouco não gritei. Logo percebi a minha própria imagem refletida no espelho do único móvel do quarto. Pude me ver ali na porta do armário: tronco inclinado, olhos arregalados, rosto afogueado pela travessura. Outro susto! Agora, por descobrir que o que eu sentia por dentro, podia ser contemplado por fora: no corpo, na face. Achei bem incômoda esta transparência, mas nem pude continuar a pensar sobre o assunto porque a porta do armário estalou bem alto e, enquanto rangia, começou a se abrir devagarinho. Uma luz alaranjada e bem forte vazava do seu interior.

Eu me senti como Ali Babá diante da caverna dos quarenta ladrões, e nem tinha precisado usar a palavra mágica. O armário, que por fora parecia um móvel sem graça, de madeira escura e formas retas, transformou-se num verdadeiro baú de tesouros. Não sei se você vai concordar comigo, pois o significado de tesouro pode variar bastante de pessoa pra pessoa, mas aqueles objetos me pareceram muito valiosos. Bisbilhotando as prateleiras, encontrei embalagens decoradas com os mais cheirosos sabonetes; frascos de refrescantes colônias; cortes de seda e cetim para os vestidos mais belos e macios; caixinhas de música com bailarinas rodopiantes; pacotes com novelos de linha e lã de todas as cores.

Eu estava nesta função agradabilíssima de caçadora de tesouros, alisando caixas e tecidos sob a luz alaranjada, quando ouvi uns passos atrás de mim... Gelei, e nem foi preciso olhar no espelho pra imaginar a minha cara de medo e de vergonha, por estar onde não deveria estar. Virei-me, já pensando no problemão que teria que enfrentar. Seria castigo na certa. Minhas tias tinham entrado juntinhas no quarto secreto. Tentei ler os rostos e corpos delas, julgando que a tal transparência devesse atingir a todos, e não gostei nada das sobrancelhas cerradas e dos narizes franzidos. As mãos na cintura, então, péssimo sinal! Gaguejei umas desculpas esfarrapadas e nada elegantes: o tênis desamarrou; uma luz forte; a culpa é do meu irmão... E sobrou até pro pobre do cachorro: tive que tirar o danado do Amendoim de dentro do quartinho! 
Minhas tias foram desarmando a carranca, e eu me alegrando por elas acreditarem no meu lero-lero. Como sou esperta, pensei comigo mesma. Por um momento percebi um certo riso no ar, mas não cheguei a ouvir o que conversaram baixinho. Tive sorte! Em vez de me castigarem, as duas resolveram contar detalhes do aposento-caverna-mágica, e de cada tesouro do armário.

Como eram muito amadas pelos familiares, e por morarem longe do comércio, recebiam muitos presentes. Foram tantos os mimos que lotaram o quarto de dormir. E o jeito foi transferir tudo para outro ambiente. Mas por que manter a porta trancada, perguntei. Para que pudessem, nos momentos de solidão ou tristeza, se refugiarem sob a luz alaranjada e, tendo nas mãos um objeto querido, imaginar reinos, viajar por mil e uma noites, emendar sentidos e palavras. Sem que ninguém as interrompesse. Claro que concordei em manter este segredo, o nosso segredo. Naquele dia, ganhei de presente um novelo de lã, amarelinho bem claro. Acho que devem ter percebido que eu, como elas, seria feliz como tecelã de memórias.

Hoje, quando sinto saudades das tias e da fazenda, apelo pra imaginação, que é como uma caverna mágica, e dou pra inventar histórias, como esta que você me ajudou a contar. Eu já separei pra você, do meu armário de presentes, um sabonete de baunilha, uma colônia cheirosa e a mais bela caixinha de música. Falta o novelo de lã. Vamos escolher a cor?

Ilustração: Angela Cotrim, óleo sobre tela, 2020
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Nova produção do curso Autoficção: Oficina de Memórias, da Estação das Letras, coordenado pela professora Ana Letícia Leal.
  • A produção deste texto me encheu de alegria. Foi minha primeira incursão na Literatura Infantil, gênero que eu adoro ler, mas que me amedrontava como escritora. E ainda rendeu uma parceria incrível com uma das minhas mais queridas leitoras. Angela Cotrim pintou as memórias e sensações despertadas pela história e o seu quadro é agora parte indissociável da minha narrativa.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Interioranas

Goiabada
Lembro-me do fogo recém-aceso, achas de madeira arrumadas no terreiro atrás da casa. Sobre a lenha, chamas modestas domadas para a função, e um crepitar discreto que me parecia chuva. 

Recordo o tacho arredondado, cobre fundo reluzente, cor borbulhante de goiaba fresca, de goiaba madura. 

Evoco as negras mãos do homem negro e a longa haste de madeira arrematada em colher. Incansável punho, vigoroso punho, a misturar a massa, que ferve. 

Respiro o cheiro doce da mistura quente, perfume único de vivência antiga. Espero, em boca, sabor de cascas e de polpa. 


Bonequinha Preta 
Acorde, minha bonequinha preta. Ande a vestir o camisolão bordado e abre bem os seus pequenos olhos de cristal escuro. Lave as mãozinhas de porcelana, mas com cuidado para que o corpinho de algodão não se molhe. E não corra, minha querida, que já bastam os remendos de fita durex que lhe marcam os membros. 

Vou carregá-la em meus braços para que veja tudo o que preparei pra você: o bolo do barro mais macio que encontrei no ribeirão; a mesa de varetas de bambu coberta pela toalha de renda surrupiada do gavetão da sala; os buquês das alamandas amarelas que florescem livres nas moitas do barranco; e a carrocinha puxada a bode enfeitada com laços coloridos. 

Vamos, suba na carruagem, é o dia do seu batizado, uma cerimônia que a minha mãe me ensinou, e que a ela foi ensinada pela minha avó. Não tenha medo, apoie a sua negra e delicada cabeça no meu colo. E eu derramarei sobre ela a água da chuva que apanhei ontem. Assim, bonequinha preta, eu te batizo minha. Nada existirá na sua vida antes de hoje, e seguiremos juntas até que, no futuro, outra criança a queira tanto quanto eu. E neste dia distante, com o coração apertado, eu ensinarei a ela este ritual antigo.


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Nova produção do curso Autoficção: Oficina de Memórias, da Estação das Letras, coordenado pela professora Ana Letícia Leal.
- O desafio foi fazer um levantamento afetivo, elencar objetos e situações aninhados nas memórias da infância. Depois, escolher dois itens deste inventário e produzir pequenos textos em prosa-poética.

- Usamos como disparador para estas produções o livro Memórias Inventadas, de Manoel de Barros.

sábado, 11 de abril de 2020

Enclausurado

À moda de Ian McEwan, 
em homenagem à genialidade do escritor

Estamos no mês de junho, eu sei. E não é porque minha mãe costuma comentar o calendário com o meu pai, naquela contagem regressiva típica das grávidas, mas pela alteração do indicador de velocidade de subida – o tempo que levamos, eu e ela, para galgar as escadas do térreo ao quarto andar e entrar no nosso apartamento da Rua Tonelero. Hoje, o percurso escada acima alcançou um índice menor em relação à semana passada. Eu percebi a mudança pelo balançar lento dos líquidos que me envolvem, pelas paradas mais frequentes, e por tê-la ouvido resmungar com a vizinha que eu, esse fardo extra que é obrigada a carregar dentro dela, ando engordando demais ultimamente.

Pudera, cansada dos comentários maldosos sobre ter mantido o peso nos primeiros meses, o que indicaria um desleixo comigo, minha mãe decidiu providenciar o certificado de boa reprodutora abandonando o shape alongado e assumindo a silhueta de fêmea prenha que se preza. Eu ainda era um minúsculo embrião, com poucas semanas de vida, mas recordo-me aterrorizado dos fortes espasmos que me sacudiam, das convulsões abruptas e imprevisíveis. E de como, a cada evento deste tipo, eu acompanhava o movimento em disparada dos passos maternos e ouvia uns grunhidos estranhos. Os sons de líquidos se derramando sobre líquidos me acalmavam, pois antecipavam o alívio da revolução interna. Com o tempo aprendi a confiar na minha avó, em seus vaticínios de que os enjoos e vômitos tinham data certa pra terminar, dali a um ou dois meses, o que de fato aconteceu. Pelas conversas que testemunhei, a elegância do corpo de minha mãe, açoitado pelos incômodos digestivos, só agradava ao meu pai, um pouco enciumado pela concorrência comigo. Recuperada, ela decidiu que se lançaria na busca dos quilos socialmente aceitáveis na sua condição.

O problema é que a comilança trouxe outras consequências, além da subida lentíssima dos quatro lances de escadas. O barrigão de minha mãe passou a disputar espaço com o meu pai e o meu avô no pequeno apê de Copacabana – sala, quarto, banheiro e cozinha –, surrupiando o conforto de ambos. O velho senhor, que havia abrigado a contragosto os recém-casados de poucas posses, viu-se exasperado. Num espaço antes ocupado por um só ser vivente, agora existiam quatro, sendo que ele me considerava um feto mimado e sem limites. Gerador de uma prole numerosa, não via nenhum sentido nos paparicos de minha mãe, marinheira de primeira viagem. A vingança de meu avô atingiu em cheio o cerne da questão: interrompeu o fluxo livre de mercadorias que recebia dos clientes como agradecimento pelos seus préstimos profissionais. Peças de bacalhau, caixas de bombons, latas de doces cristalizados, entre outras delícias, passaram a ser malocadas no guarda-roupas do velho e não mais socializadas com a família. A iniciativa, frustrada, ainda causou um grande mal estar na convivência dos três. Eu adotei a sábia medida do distanciamento, não sou de tomar partido.

Foi mais ou menos nesta época que comecei a perceber os comentários da minha mãe sobre a necessidade de nos mudarmos, sobre o seu desejo de ter mais espaço e liberdade numa casa que pudesse administrar do seu jeito. Tinhosa que só, passou os últimos meses nesta catequese. Aguardava o final do jantar e, logo que meu avô se distraía com o noticiário no rádio, começava a pregação. Nem sempre eu conseguia ouvir bem suas palavras pelo tilintar da louça sendo lavada ou pelos sons da programação, mas podia sentir a circulação volumosa do seu sangue me envolvendo na medida em que se empolgava com o discurso. Tenho a impressão que meu pai já concordou, pois ontem pude capturar fragmentos da conversa: “tem elevador”, “bairro do Flamengo”, “o quarto do bebê”... 

Confesso que concordo com minha mãe, entendo as dificuldades dos cômodos acanhados e da falta de liberdade para ir e vir. Sinto que a minha habitação, um conjugado sem divisórias que até já me pareceu amplo e confortável, está sofrendo uma reforma às avessas: paredes tornam-se mais espessas, portas, mais estreitas, surgem cantos desnecessários e inacessíveis. Ando esbarrando em mim mesmo, sinto-me enclausurado. Paciência, digo-me num mantra de final de jornada. Paciência, pois, afinal, estamos em junho. E em mais um mês estarei livre!

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Texto produzido para o curso Autoficção: Oficina de Memórias, da Estação das Letras, coordenado pela professora Ana Letícia Leal.
  • A narrativa nasceu de uma pesquisa sobre as casas em que morei. Jurava que minha primeira morada no mundo tinha sido em Copacabana, mas estava errada. Meus pais viveram na Rua Tonelero durante o período da minha gestação e, logo que saí da maternidade, fui para um apartamento no Flamengo.
  • Como o gênero é de Autoficção, quer dizer, o escritor tem liberdade total para tornar ficção o que é memória, resolvi embarcar nesta viagem intrauterina. E me vali da estratégia incrível de Ian McEwan, que, no romance Enclausurado, usou o feto como narrador. Mantive o mesmo título do livro de McEwan para enfatizar o recurso de intertextualidade.

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Na Rede:
O podcast da Companhia das Letras tem um episódio dedicado ao livro Enclausurado. Além da conversa sobre o romance, aproveite a leitura de trechos feita pelo Wagner Moura. Imperdível!
Rádio Companhia #85  (link para o Spotify)

sexta-feira, 6 de março de 2020

Cheiro de Oscar

O olfato é um sentido exigente: não aceita substitutos, dispensa representantes, tem ojeriza a mediações. O que ele almeja é a experiência direta, a cafungada explícita. Trabalha para o genuíno deleite do indivíduo que sente, ou para o seu total desprazer. 

O olfato conhece as manhas dos cheiros, sabe que são dissimulados, que se esgueiram pelas instâncias da vida e, de repente, sem aviso, se fazem presentes e tomam à força as narinas desavisadas. Ele se entrega, sem restrições, aos odores agradáveis, aqueles que aprendeu a associar a um certo bem estar - o perfume das flores da Dama da Noite e do Manacá; a exalação da manga e da goiaba; o aroma do pão assando no forno e do café passado na hora. Mas quando o fedor vem do ralo, quando evoca dejetos, mofo, putrefação, o olfato se contrai, aciona os dedos para que protejam o nariz até o limite, até que não se possa mais suspender a respiração. No instante a seguir, inunda-se de estranhamento e desconforto, e de nojo. 

Dado o seu caráter presencial, é surpreendente perceber que o olfato seja um elemento definitivo numa produção audiovisual. Em Parasita, filme do diretor Bong Joon-ho, que só assisti semana passada, depois que foi distribuído nos plataformas de streaming, a trama é marcada pela percepção do cheiro que emana dos subterrâneos, dos buracos insalubres, cheiro que escancara a desigualdade entre os personagens num dos países mais ricos do leste asiático. As tensões entre os mundos das duas famílias sul-coreanas vão sendo construídas ao longo do filme – locações, iluminação, diálogos e situações entre a comédia e o drama sublinham as diferenças e antagonismos. Mas é a crescente aversão ao odor dos corpos sem lugar, dos que vivem ao rés do chão ou abaixo dele, que faz explodir a violência latente. 

Ao final da exibição, com o nariz perfeitamente conectado à mente, uni-me ao time de admiradores de Parasita, e aos juízes da Academia. E entendi porque ninguém estranhou as premiações recebidas pelo roteiro, direção e melhor filme. É que mesmo antes da cerimônia, já se sentia um doce perfume de Oscar no ar.
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Na Rede:
  • A escrita desta postagem me fez lembrar  O Cheiro do Ralo, filme estrelado por Selton Mello, e dirigido por Heitor Dhalia. Assim como Parasita, trata das relações desiguais entre pessoas: opressão, exploração, degradação. Tudo isso envolto pelo odor que emana do banheiro entupido do escritório do protagonista. É um filme incômodo, até pensei em desistir no meio, mas valeu a pena insistir. Quem se interessar, pode acessar sem custo o Youtube, e tirar as suas próprias conclusões. Clique AQUI

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Joaquin

Não dou a mínima para histórias em quadrinhos, os super-heróis e seus arqui-inimigos. Não ligo pra Gothan City, envolta em trevas, lixo e ratos. Não quero saber se Thomas Wayne é um empresário decente ou se abusa das funcionárias. Não me interesso pelo assassinato dos pais de Bruce, e principalmente, não me comovo com os olhos tristes do pequeno Batman. Pouco me importa o filme de Todd Philips, seus prêmios passados, futuros; e as discussões sobre as origens da violência, seja numa sociedade distópica ou aqui mesmo no bairro ao lado.

Mas o que eu quero mesmo entender, o que ainda não consegui atinar, é como um corpo, o corpo de Joaquin, transforma-se assim, frente aos nossos olhos, em cavalo vigoroso da loucura. O esquálido corpo de Joaquin, costelas à mostra na cama, na banheira. Magreza que se veste de cores, esforço em technicolor pra disfarçar a vida monocromática.

No rosto de Joaquin, a face do palhaço, lábios modelados à força pelos dedos, sorriso no qual só as crianças acreditam. Na boca de Joaquin, a gargalhada, o descontrole, o desespero; e o cigarro.

Dançam os braços e pés de Joaquin, batalham por momentos de equilíbrio e elegância; movimentos belos e inúteis. O balé sucumbe ao medo, à raiva e ao desvario. A arma posta na mão de Joaquin. That’s life, conclui Sinatra ao final do filme. Ou será conclusão de Joaquin?

Não dou a mínima para Arthur Fleck, não ligo para o Coringa. O que eu quero mesmo entender, o que não consegui atinar, é como o corpo, o complexo corpo de Joaquin, se livra do personagem depois de tanta entrega e agonia.
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Na Rede:

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Travessias

      Hora da partida. A voz do encarregado inicia a leitura dos nomes: “Valentino Lazzari, Maria Lazzari, Giovanni Corriolo” - a lista é longa, um a um os personagens vão subindo as escadas que dão acesso ao convés – “Rosa Tomaso, Francesco Ferrara...” O homem dirige-se ao encarregado para corrigi-lo: “Francesco Ignácio Ferrara, senhor”. Em seguida, reúne os dois sacos de aniagem com as tralhas que lhe restaram e segue a fila dos desvalidos. A cada degrau, despe-se das suas origens como se fossem roupas surradas, cava a memória com enxada larga, até que, ao adentrar o navio, só lhe reste um buraco oco, embora não haja muito o que esquecer. Vida difícil em sua terra natal: pobreza, doença, guerra e morte. Logo que se estabelecesse na propriedade prometida, mandaria buscar pai, mãe, irmãos. Foi pela família que se dispusera a enfrentar a incerteza da longa viagem, talvez o ano virasse antes que alcançasse o seu destino. Mas quem o olha ali, encostado à amurada, cabeça e costas eretas, não desconfia da sua ansiedade. 
      Durante toda a travessia, Francesco quase não fala. Concentra-se no que está por vir. Em vez do mar infindo, antevê a terra que receberá a força do seu trabalho. Aceita a ração reduzida de comida e água como condição de penitência e redenção. Ignora as náuseas do balanço das ondas, mas guarda o som daquele ir e vir, um farfalhar esperançoso a lhe dizer que tudo será novo, de novo. Há, contudo, o cheiro da maresia, maresia que não se curva aos devaneios de Francesco: o odor ácido o incomoda nas ventas, faz arder seus olhos e fere a imaginação. Só mesmo o final da viagem é capaz de lhe sossegar os sentidos. Ao desembarcar no porto, construção hospitaleira entre pedras banhadas de sol, sente-se, enfim, no tão ansiado refúgio. Umedece as pontas dos dedos na água salgada e batiza-se: “Francesco Imigrante Ferrara, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. 


      Amanhece. Nídia Martinez toma a filha pela mão, fecha a porta da casa simples, cruza a rua apressada sem nem olhar para trás. Não há muito do que se despedir desde que a violência se instalou por toda a vizinhança. Gangues, traficantes, sequestros, assassinatos: palavras e sentidos dos quais foge, dos quais quer a filha proteger. Levam duas mochilas de lona com o indispensável para cruzar, a pé, centenas de quilômetros até a fronteira de Shangri-lá - o lugar onde serão plenamente felizes, como naquele filme que Nídia assistiu há tempos. 
      Pelo caminho, outras famílias vão se juntando à grande marcha dos desvalidos. Impossível contar adultos, crianças, saber seus nomes, organizá-los. A massa compacta segue, dia após dia em direção ao norte, comida e água racionadas. Nídia não esmorece, quem a olha à frente da caravana, passos firmes, postura altiva, não avalia a sua agonia. O sonho é ferramenta de resistência. Sonhos que compartilha com a filha: castelos são refúgios; pessoas gentis, fadas madrinhas do esperado recomeço. Há, contudo, a realidade da travessia, realidade que não se curva aos devaneios de Nídia: calor inclemente, cansaço, fraqueza, e a indiferença dos que assistem a passagem da multidão. Ela remenda as vísceras, põe o coração em standby, e avança para, logo à frente, descobrir que nem mesmo o final da viagem é capaz de lhe sossegar o corpo. Lá está Shangri-lá, cercada. E não se vê porta, passagem, uma mísera abertura. Nídia leva a filha pela mão, aproxima-se da barreira intransponível, ajoelha-se e, atordoada, pergunta-se: “Nídia Refugiada Martinez, e agora?”

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O último desafio da Oficina Online Escrevendo Crônicas, coordenada por Rubem Penz, foi produzir uma crônica em prosa-poética sobre Refugiados. 
A proposta me fez recordar esta gravura de Lasar Segall que me impactou durante visita ao Museu do artista em São Paulo: “Emigrante debruçado na amurada”, de 1929. Com economia de traços e cores, Segall comunicou muitos sentimentos: desamparo, desespero, solidão, amargura. Essas emoções me inspiraram a escrita e acabaram por se revelar, e se atualizar, em Francesco e Nídia, personagens que, a seu modo e em seu tempo, fazem as inevitáveis travessias.


Para saber mais sobre a obra de Lasar Segall, acesse a exposição on-line Navio de Emigrantes.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

Metodologia

Quando eu escrevo, ou melhor, quando eu decido começar a escrever, já pensei muita coisa antes: escolhi ideias, selecionei palavras, ordenei sentidos. Tudo, tudo bem claro na mente.

O problema é conseguir capturar os pensamentos que, diante do papel ou da tela, fogem apavorados. E toca a revirar a casa a procura deles, os danados são hábeis em inventar novos esconderijos. Tornam-se tão ariscos ao serem descobertos que preciso agarrá-los pelos cabelos e aguentar a gritaria.

E quando, finalmente, concluo a perseguição e sento-me para iniciar a tarefa, estou tão cansada com aquele pique-pega que tenho que deixar a escrita para o dia seguinte.

Escrever seria mais fácil se eu tivesse um gravador de pensamentos – uma traquitana simples, portátil, acionada por um piscar de olhos. Alguém conhece uma startup que possa me ajudar?

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Ufa! Que alívio! Não sou só eu!
Foi o Joaquim Ferreira dos Santos que me salvou do autoflagelo, mas fiquei sabendo que muita gente padece do mesmo mal - um desejo incontrolável de postergar, adiar, retardar, deixar pra amanhã o que se pode fazer hoje, no caso, o que se pode escrever hoje.
Li o depoimento dele e... deu-se a libertação; escrevi sobre o meu processo de escrita. Um trabalho em equipe contra a procrastinação, embora eu ache esta palavra horrorosa. Valeu, Joaquim.

Quando eu escrevo, ou melhor, quando eu me sento para escrever, costumo levantar logo em seguida para fazer qualquer outra coisa. Faço isso algumas vezes. Tomo água, me lembro de um telefonema para dar, até que não resta outro jeito se não encarar o teclado e enfileirar as palavrinhas, uma atrás da outra, e tratando para que elas não pinguem em gotas monótonas como as que pingam agora da torneira do banheiro e, desculpem, preciso me levantar para ir lá fechar a porta. Eu já tive um joguinho no computador que me ajudava bastante a adiar a primeira palavra. Abria a tela, jogava o arqueiro e só depois, quando a mente já esta estava bem esvaziada e não restava outro jeito, começava o trabalho. Escrever é um trabalho pesado.

Joaquim Ferreira dos Santos – depoimento para o Segundo Caderno de O Globo, 1º de agosto de 2003