segunda-feira, 27 de abril de 2020

O Quarto das Tias

Psiu! Ei, você aí! É, você mesma, menina! 
Venha cá, eu quero te contar uma história que habita a minha memória há tempos. É uma história feita de imagens animadas, como se fossem vídeos bem curtinhos e embaralhados. Para ela virar uma história de verdade, que tenha pé e cabeça, e seja boa de ouvir, preciso emendar as imagens com palavras. As palavras são como fios coloridos de lã, elas tecem memórias e criam enredos tão belos e necessários como sapatinhos de tricô ou mantas de crochê. Sei que você, como eu, é apaixonada pelas palavras. Uma tagarela desde pequenina, as mãos repletas de novelos imaginários. Ajude-me, então, a montar o tear das ideias e a entrelaçar todos os sentidos que pudermos imaginar. E a minha história vai se transformar num tapete multifacetado e completo.

A história que quero te contar aconteceu quando eu ainda era criança, devia ter mais ou menos a idade que você tem agora, e costumava passar férias na fazenda do meu avô. Ele morava lá com duas irmãs, os três trabalhavam muito pra manter tudo funcionando: a casa, o curral, a lavoura, o pomar, o galinheiro.

Eu gostava de visitar o quarto em que as minhas tias dormiam, um espaço pequeno e simples. Era pra lá que eu corria pra pedir alguma coisa: um biscoito, um carinho, um conselho. Era pra lá que eu ia quando queria descansar numa cama macia e cheirosa enquanto ouvia os causos da família que elas sabiam tão bem contar.

Uma tarde, pretendia encontrar as tias para uma conversa, mas elas já estavam ocupadas na cozinha. Saí pelo corredor com a intenção de voltar a brincar no terreiro, mas, no caminho, notei algo muito estranho: a porta do cômodo seguinte ao delas estava entreaberta. Aquele era um quarto sempre trancado, praticamente proibido para os habitantes da fazenda, menos pras minhas tias, claro. Elas se revezavam no controle do aposento, e sempre andavam com a chave presa na cintura. Criança nenhuma entrara lá. Nunca.

Fiquei curiosa, muito curiosa, curiosíssima! Disfarcei, fingindo estar amarrando o cadarço do tênis, e olhei em volta. Ninguém! Fui entrando devagar no compartimento desconhecido e pouco iluminado. As janelas, venezianas de madeira verde e vidro na parte superior, estavam fechadas. Aos poucos, fui percebendo o espaço quase vazio. Dei mais uns passos... e vi, de relance, uma imagem na parede. Tomei um baita susto e por pouco não gritei. Logo percebi a minha própria imagem refletida no espelho do único móvel do quarto. Pude me ver ali na porta do armário: tronco inclinado, olhos arregalados, rosto afogueado pela travessura. Outro susto! Agora, por descobrir que o que eu sentia por dentro, podia ser contemplado por fora: no corpo, na face. Achei bem incômoda esta transparência, mas nem pude continuar a pensar sobre o assunto porque a porta do armário estalou bem alto e, enquanto rangia, começou a se abrir devagarinho. Uma luz alaranjada e bem forte vazava do seu interior.

Eu me senti como Ali Babá diante da caverna dos quarenta ladrões, e nem tinha precisado usar a palavra mágica. O armário, que por fora parecia um móvel sem graça, de madeira escura e formas retas, transformou-se num verdadeiro baú de tesouros. Não sei se você vai concordar comigo, pois o significado de tesouro pode variar bastante de pessoa pra pessoa, mas aqueles objetos me pareceram muito valiosos. Bisbilhotando as prateleiras, encontrei embalagens decoradas com os mais cheirosos sabonetes; frascos de refrescantes colônias; cortes de seda e cetim para os vestidos mais belos e macios; caixinhas de música com bailarinas rodopiantes; pacotes com novelos de linha e lã de todas as cores.

Eu estava nesta função agradabilíssima de caçadora de tesouros, alisando caixas e tecidos sob a luz alaranjada, quando ouvi uns passos atrás de mim... Gelei, e nem foi preciso olhar no espelho pra imaginar a minha cara de medo e de vergonha, por estar onde não deveria estar. Virei-me, já pensando no problemão que teria que enfrentar. Seria castigo na certa. Minhas tias tinham entrado juntinhas no quarto secreto. Tentei ler os rostos e corpos delas, julgando que a tal transparência devesse atingir a todos, e não gostei nada das sobrancelhas cerradas e dos narizes franzidos. As mãos na cintura, então, péssimo sinal! Gaguejei umas desculpas esfarrapadas e nada elegantes: o tênis desamarrou; uma luz forte; a culpa é do meu irmão... E sobrou até pro pobre do cachorro: tive que tirar o danado do Amendoim de dentro do quartinho! 
Minhas tias foram desarmando a carranca, e eu me alegrando por elas acreditarem no meu lero-lero. Como sou esperta, pensei comigo mesma. Por um momento percebi um certo riso no ar, mas não cheguei a ouvir o que conversaram baixinho. Tive sorte! Em vez de me castigarem, as duas resolveram contar detalhes do aposento-caverna-mágica, e de cada tesouro do armário.

Como eram muito amadas pelos familiares, e por morarem longe do comércio, recebiam muitos presentes. Foram tantos os mimos que lotaram o quarto de dormir. E o jeito foi transferir tudo para outro ambiente. Mas por que manter a porta trancada, perguntei. Para que pudessem, nos momentos de solidão ou tristeza, se refugiarem sob a luz alaranjada e, tendo nas mãos um objeto querido, imaginar reinos, viajar por mil e uma noites, emendar sentidos e palavras. Sem que ninguém as interrompesse. Claro que concordei em manter este segredo, o nosso segredo. Naquele dia, ganhei de presente um novelo de lã, amarelinho bem claro. Acho que devem ter percebido que eu, como elas, seria feliz como tecelã de memórias.

Hoje, quando sinto saudades das tias e da fazenda, apelo pra imaginação, que é como uma caverna mágica, e dou pra inventar histórias, como esta que você me ajudou a contar. Eu já separei pra você, do meu armário de presentes, um sabonete de baunilha, uma colônia cheirosa e a mais bela caixinha de música. Falta o novelo de lã. Vamos escolher a cor?

Ilustração: Angela Cotrim, óleo sobre tela, 2020
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Nova produção do curso Autoficção: Oficina de Memórias, da Estação das Letras, coordenado pela professora Ana Letícia Leal.
  • A produção deste texto me encheu de alegria. Foi minha primeira incursão na Literatura Infantil, gênero que eu adoro ler, mas que me amedrontava como escritora. E ainda rendeu uma parceria incrível com uma das minhas mais queridas leitoras. Angela Cotrim pintou as memórias e sensações despertadas pela história e o seu quadro é agora parte indissociável da minha narrativa.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Interioranas

Goiabada
Lembro-me do fogo recém-aceso, achas de madeira arrumadas no terreiro atrás da casa. Sobre a lenha, chamas modestas domadas para a função, e um crepitar discreto que me parecia chuva. 

Recordo o tacho arredondado, cobre fundo reluzente, cor borbulhante de goiaba fresca, de goiaba madura. 

Evoco as negras mãos do homem negro e a longa haste de madeira arrematada em colher. Incansável punho, vigoroso punho, a misturar a massa, que ferve. 

Respiro o cheiro doce da mistura quente, perfume único de vivência antiga. Espero, em boca, sabor de cascas e de polpa. 


Bonequinha Preta 
Acorde, minha bonequinha preta. Ande a vestir o camisolão bordado e abre bem os seus pequenos olhos de cristal escuro. Lave as mãozinhas de porcelana, mas com cuidado para que o corpinho de algodão não se molhe. E não corra, minha querida, que já bastam os remendos de fita durex que lhe marcam os membros. 

Vou carregá-la em meus braços para que veja tudo o que preparei pra você: o bolo do barro mais macio que encontrei no ribeirão; a mesa de varetas de bambu coberta pela toalha de renda surrupiada do gavetão da sala; os buquês das alamandas amarelas que florescem livres nas moitas do barranco; e a carrocinha puxada a bode enfeitada com laços coloridos. 

Vamos, suba na carruagem, é o dia do seu batizado, uma cerimônia que a minha mãe me ensinou, e que a ela foi ensinada pela minha avó. Não tenha medo, apoie a sua negra e delicada cabeça no meu colo. E eu derramarei sobre ela a água da chuva que apanhei ontem. Assim, bonequinha preta, eu te batizo minha. Nada existirá na sua vida antes de hoje, e seguiremos juntas até que, no futuro, outra criança a queira tanto quanto eu. E neste dia distante, com o coração apertado, eu ensinarei a ela este ritual antigo.


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Nova produção do curso Autoficção: Oficina de Memórias, da Estação das Letras, coordenado pela professora Ana Letícia Leal.
- O desafio foi fazer um levantamento afetivo, elencar objetos e situações aninhados nas memórias da infância. Depois, escolher dois itens deste inventário e produzir pequenos textos em prosa-poética.

- Usamos como disparador para estas produções o livro Memórias Inventadas, de Manoel de Barros.

sábado, 11 de abril de 2020

Enclausurado

À moda de Ian McEwan, 
em homenagem à genialidade do escritor

Estamos no mês de junho, eu sei. E não é porque minha mãe costuma comentar o calendário com o meu pai, naquela contagem regressiva típica das grávidas, mas pela alteração do indicador de velocidade de subida – o tempo que levamos, eu e ela, para galgar as escadas do térreo ao quarto andar e entrar no nosso apartamento da Rua Tonelero. Hoje, o percurso escada acima alcançou um índice menor em relação à semana passada. Eu percebi a mudança pelo balançar lento dos líquidos que me envolvem, pelas paradas mais frequentes, e por tê-la ouvido resmungar com a vizinha que eu, esse fardo extra que é obrigada a carregar dentro dela, ando engordando demais ultimamente.

Pudera, cansada dos comentários maldosos sobre ter mantido o peso nos primeiros meses, o que indicaria um desleixo comigo, minha mãe decidiu providenciar o certificado de boa reprodutora abandonando o shape alongado e assumindo a silhueta de fêmea prenha que se preza. Eu ainda era um minúsculo embrião, com poucas semanas de vida, mas recordo-me aterrorizado dos fortes espasmos que me sacudiam, das convulsões abruptas e imprevisíveis. E de como, a cada evento deste tipo, eu acompanhava o movimento em disparada dos passos maternos e ouvia uns grunhidos estranhos. Os sons de líquidos se derramando sobre líquidos me acalmavam, pois antecipavam o alívio da revolução interna. Com o tempo aprendi a confiar na minha avó, em seus vaticínios de que os enjoos e vômitos tinham data certa pra terminar, dali a um ou dois meses, o que de fato aconteceu. Pelas conversas que testemunhei, a elegância do corpo de minha mãe, açoitado pelos incômodos digestivos, só agradava ao meu pai, um pouco enciumado pela concorrência comigo. Recuperada, ela decidiu que se lançaria na busca dos quilos socialmente aceitáveis na sua condição.

O problema é que a comilança trouxe outras consequências, além da subida lentíssima dos quatro lances de escadas. O barrigão de minha mãe passou a disputar espaço com o meu pai e o meu avô no pequeno apê de Copacabana – sala, quarto, banheiro e cozinha –, surrupiando o conforto de ambos. O velho senhor, que havia abrigado a contragosto os recém-casados de poucas posses, viu-se exasperado. Num espaço antes ocupado por um só ser vivente, agora existiam quatro, sendo que ele me considerava um feto mimado e sem limites. Gerador de uma prole numerosa, não via nenhum sentido nos paparicos de minha mãe, marinheira de primeira viagem. A vingança de meu avô atingiu em cheio o cerne da questão: interrompeu o fluxo livre de mercadorias que recebia dos clientes como agradecimento pelos seus préstimos profissionais. Peças de bacalhau, caixas de bombons, latas de doces cristalizados, entre outras delícias, passaram a ser malocadas no guarda-roupas do velho e não mais socializadas com a família. A iniciativa, frustrada, ainda causou um grande mal estar na convivência dos três. Eu adotei a sábia medida do distanciamento, não sou de tomar partido.

Foi mais ou menos nesta época que comecei a perceber os comentários da minha mãe sobre a necessidade de nos mudarmos, sobre o seu desejo de ter mais espaço e liberdade numa casa que pudesse administrar do seu jeito. Tinhosa que só, passou os últimos meses nesta catequese. Aguardava o final do jantar e, logo que meu avô se distraía com o noticiário no rádio, começava a pregação. Nem sempre eu conseguia ouvir bem suas palavras pelo tilintar da louça sendo lavada ou pelos sons da programação, mas podia sentir a circulação volumosa do seu sangue me envolvendo na medida em que se empolgava com o discurso. Tenho a impressão que meu pai já concordou, pois ontem pude capturar fragmentos da conversa: “tem elevador”, “bairro do Flamengo”, “o quarto do bebê”... 

Confesso que concordo com minha mãe, entendo as dificuldades dos cômodos acanhados e da falta de liberdade para ir e vir. Sinto que a minha habitação, um conjugado sem divisórias que até já me pareceu amplo e confortável, está sofrendo uma reforma às avessas: paredes tornam-se mais espessas, portas, mais estreitas, surgem cantos desnecessários e inacessíveis. Ando esbarrando em mim mesmo, sinto-me enclausurado. Paciência, digo-me num mantra de final de jornada. Paciência, pois, afinal, estamos em junho. E em mais um mês estarei livre!

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Texto produzido para o curso Autoficção: Oficina de Memórias, da Estação das Letras, coordenado pela professora Ana Letícia Leal.
  • A narrativa nasceu de uma pesquisa sobre as casas em que morei. Jurava que minha primeira morada no mundo tinha sido em Copacabana, mas estava errada. Meus pais viveram na Rua Tonelero durante o período da minha gestação e, logo que saí da maternidade, fui para um apartamento no Flamengo.
  • Como o gênero é de Autoficção, quer dizer, o escritor tem liberdade total para tornar ficção o que é memória, resolvi embarcar nesta viagem intrauterina. E me vali da estratégia incrível de Ian McEwan, que, no romance Enclausurado, usou o feto como narrador. Mantive o mesmo título do livro de McEwan para enfatizar o recurso de intertextualidade.

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Na Rede:
O podcast da Companhia das Letras tem um episódio dedicado ao livro Enclausurado. Além da conversa sobre o romance, aproveite a leitura de trechos feita pelo Wagner Moura. Imperdível!
Rádio Companhia #85  (link para o Spotify)