segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

Sara e o Stand Up

O sol já havia embicado para o poente quando terminamos o almoço no Bar da Rô, um restaurante assentado entre o mar e as águas quase doces do rio Carapitangui. Enquanto aproveitávamos o clima de total relaxamento, uma mulher circulava por entre as mesas, cesto de palha nas mãos. Chamei-a, ela se aproximou. Pude observar o seu corpo atarracado vestido com simplicidade – bermuda jeans, comprimento logo acima dos joelhos; camiseta de malha; chinelos nos pés. Não soube avaliar sua idade, mais nova do que eu, por certo, mas quantos anos menos? Difícil dizer pelo cabelo puxado em coque, a pele um tanto castigada pela lida diária.

Sara apresentou-se, e me ofereceu a variedade de cocadas que ela mesma produzia e vendia aos turistas. Pedi uma branca, das comuns, com nada além de coco e açúcar. Ela até começou a se desculpar pelo meu pedido ter acabado um tantinho antes, no freguês anterior, mas, por sorte, procurando entre as cocadas gourmet, encontrou uma última embalagem do produto desejado. Agradeci, paguei a cocada, comi um pedaço. Em seguida, rumei para as águas do rio. Sara, para o trabalho. 

Eu ainda estava mergulhada no Carapitangui quando a figura dela voltou a me chamar a atenção. Desta vez, cruzando o rio sobre uma prancha de stand up. Seguia, altiva, cabeça ereta e olhos voltados para a margem oposta. O traje? A mesma bermuda e a camiseta de malha, os pés descalços. Impressionou-me a destreza com que manejava o remo e a velocidade com que avançava. Impactada, acompanhei a plasticidade da cena que se desenhava: o corpo leve da mulher integrado à prancha, a água rendendo-se aos seus movimentos, o vento soprando a favor do destino de Sara. Imaginei que o espetáculo tinha terminado quando ela alcançou, com elegância, a areia da prainha ali defronte, mas não. Minutos depois, refez o caminho, que parecia decorado pela intimidade, trazendo de carona um cacho de cocos. Quando aportou no pequeno píer do restaurante, não me contive e a aplaudi. Ela, um pouco sem graça com os meus cumprimentos, tentou minimizar o feito, falando sobre os muitos tombos do período de aprendizagem, e que a rapidez da viagem devia-se à falta de material para as cocadas. 

As explicações dela me fizeram pensar nos tombos, os reais e os metafóricos, e nas faltas que cruzam as vidas de tantas mulheres brasileiras. Sara, porém, não liga; sobe no stand up, atravessa distâncias e transforma qualquer ponto da margem do rio em almejado porto seguro. Na minha jornada de volta pra casa, em vez do cachos de cocos, trouxe o exemplo de Sara como inspiração e memória.
Por do sol no Bar da Rô - Foto de Mario Oliveira


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Para saber mais sobre a viagem, leia também: Você já à Bahia, nega? e Longe de Casa

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Longe de Casa

Estar na Península de Maraú é uma delícia! Praias limpas, águas claras, manguezais preservados, lagoas, muito verde e... pouca gente. Pouca gente?! Chegar ao paraíso é um perrengue! Muitos turistas se intimidam com a dificuldade de acesso - 50 km de estrada de terra, esburacada e enlameada até Barra Grande, o principal vilarejo da região. A alternativa é a travessia de barco desde a cidade de Camamu.

Para nós que saímos do Rio de Janeiro, a viagem durou em torno de 12 horas. Foram dois voos (conexão em São Paulo) até Ilhéus; um traslado de carro até Camamu (duas horas em média); e o percurso de lancha de 30 minutos. Do píer de Barra Grande até a pousada Ponta do Mutá, mais 10 minutos a pé. É longe e foi cansativo, mas o planejamento da nossa estadia ajudou. Descontando os dois dias de deslocamento (ida e volta), tivemos sete dias inteiros para os passeios, tempo suficiente para curtir e recobrar as energias.
Desde o final de 2019 eu não viajava de avião. Nestes dois anos, só saí de casa de carro, e para cidades próximas. Embora a Bahia tenha aparecido na minha vida num momento de contenção da pandemia – boas taxas de vacinação, casos e mortes por Covid em queda – não me senti totalmente tranquila. Nem a dose de reforço da vacina me livrou de um sentimento desagradável que me acompanhava ali no fundo da mochila, sempre colado ao meu corpo. E se eu adoecesse? Ou o Mário? E se tivéssemos que ficar em quarentena? E se...?
Com o passar dos dias, fui conseguindo controlar o coração e a mente, agradecendo por cada etapa vencida, respirando aliviada por todo o nosso grupo estar bem. Agora que estamos de volta, Maraú ficará guardada na minha memória com mais uma etiqueta de felicidade: sol brilhante, praia calma, camarão frito, água morna e saúde integral!

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Toda viagem é uma experiência única, pessoal e intransferível. O que sentimos em um determinado lugar depende de muitos fatores, desde os mais subjetivos (o nosso jeito de ser e ver as coisas) aos mais práticos (época do ano, meteorologia, hotéis e restaurantes escolhidos). Importa também, e muito, os companheiros com quem partilhamos os dias longe de casa. Sem o Mário, eu nem começo a pensar num roteiro, é meu parceiro de todos os momentos. Mas, na Bahia, a comitiva aumentou. Obrigada, Vânia, Artur e Mariana. Viajar com vocês foi muito bom.
Companheiros de viagem

Lagoa do Cassange

Pôr do Sol na Ponta do Mutá

Praia dos Três Coqueiros

Para saber mais sobre a viagem, leia também: Você já à Bahia, nega?

terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Você já foi à Bahia, nega? Não? Então vá.

Eu fui. Com meus vinte e poucos anos, segui pela primeira vez o conselho de Caymmi. Fui a Salvador, mas também a Prado, Arraial da Ajuda e Trancoso numa road trip pelo Nordeste com as amigas. Depois de três décadas de intervalo, voltei pra visitar uma parte da família que emigrou pra capital e nem pensa em retornar ao Rio de Janeiro. Pois é, meus primos testemunham que a Bahia tem um jeito que nenhuma terra tem. Em seguida, já com os netos, regressei a Trancoso, uma vila muito diferente daquele lugarejo rústico que havia conhecido nos anos 80. Todas foram viagens marcantes, guardadas na memória com as minhas etiquetas de felicidade: sol brilhando, praia calma, camarão frito, água morna.

No mês de novembro, Caymmi, inconformado com as desventuras dos brasileiros nestes quase dois anos de pandemia, soprou no ouvido da minha cunhada que já era tempo de regressar à Bahia e recuperar a sorte natural a todos os viajantes que andam por lá. Ela, seduzida pelos dengos do baiano, organizou o roteiro e me convidou. Topei na hora! Resultado: semana passada, voltei de uma temporada na Península do Maraú, um território em que eu ainda não havia pisado, e distante duas horas (de carro) de Ilhéus. E não é que Jorge Amado foi nos encontrar na pracinha do Centro Histórico?! Muita sorte a nossa! Valeu, Caymmi.

Grafite - Rildo Foge

Ilhéus - em frente ao Restaurante Vesúvio
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Retorno às crônicas de viagem, depois de um longo e tenebroso inverno, quer dizer, dois invernos, duas perdidas primaveras e dois tristes outonos! Verões? Já são quase 3... 
Escrever me faz capturar o tempo, revê-lo, criar novos contextos, cultivar memórias – é uma forma de felicidade. Tomara que os leitores se alegrem também.

Para saber mais sobre a viagem, leia também: Longe de Casa

Na Rede:
Você Já Foi à Bahia? interpretada por Nana, Dori e Danilo Caymmi

domingo, 25 de abril de 2021

Choradeira

Eu chorava. E muito. Às vezes, o escarcéu começava ainda em casa quando eu desconfiava das intenções da minha mãe. Devia ser o rosto mais tenso dela, os gestos apressados ou a conversa curta no café da manhã. Lágrimas aos borbotões e pedidos de clemência não a comoviam, e só me restava a estratégia final. Escondia-me atrás da cortina, acreditando que, se eu não visse o perigo, o perigo também não me veria, e iria bafejar o seu hálito desagradável no cangote de outra criança. Demorei pra compreender o fracasso dessa lógica embora, ainda hoje, caia na tentação de fechar bem os olhos e esperar que o coração não sinta as agonias da vida.

Mas também acontecia de eu sair, inocente, para um passeio matinal e só começar a entender a situação lá pela esquina das ruas do Catete e Silveira Martins. Era por ali também que a minha mãe apertava o passo e só parava no portão do posto de saúde, onde poderia contar com a ajuda dos funcionários para domar a filha que começava a espernear. Agulhas eram o meu pavor. Dia de vacina, um verdadeiro tormento. O berreiro, no entanto, nunca teve efeito prático, pois a vacinação era um valor materno inegociável. Pode chorar, mas vai ter que encarar a injeção.

Como os adultos não costumam ser muito generosos com os medos das crianças, o meu desespero virou folclore na família. O caso mais emblemático aconteceu na campanha de vacinação contra a meningite, eu já entrando na adolescência. Em vez da mãe, acompanhou-me uma tia e a prima da mesma idade. No caminho, foram me tranquilizando: eu nem veria a agulha, a pistola de ar comprimido faria o serviço, sem dor e com rapidez – pá, pum, outro braço, por favor. Enfrentamos as filas no Maracanãzinho, o vai e vem das pessoas, o calor do dia, até que finalmente tomei, com os olhos secos, a dose que me cabia. A vitória durou pouco. Já na saída do estádio, fui ficando tonta, tonta, e pálida. Minha tia, apavorada que eu desmaiasse bem no meio da rua, fez com que nos sentássemos no meio-fio. Um senhor, sensibilizado com a cena, parou o carro e nos ofereceu carona. Desde então, em conversas ao longo da vida, nós rimos ao lembrar que fomos salvas por um cavaleiro andante, montado em seu garboso fusca verde.

Com o tempo, fui aprendendo a dominar o medo, a tranquilizar o espírito, e as agulhas pararam de me fazer chorar, dando espaço para novos sentimentos: caí de amores pela minha caderneta de vacinação. Nela coleto, orgulhosa, os carimbinhos das injeções contra febre amarela, tétano, hepatite, gripe. Quinta-feira passada, recolhi o meu mais esperado troféu. A fila pequena e bem organizada da Clínica de Família Santa Marta quase não me deu tempo para refletir sobre a importância do momento, mas foi só bater os olhos no pequeno cartaz grudado na parede - Viva o SUS, Viva a Ciência Brasileira – para ser tomada pela emoção. Segurei as lágrimas enquanto registrava telefone e CPF, e meus olhos chegaram até a sorrir no instante exato da vacinação. Na porta da rua, porém, não consegui fugir da choradeira.