terça-feira, 16 de junho de 2020

Eu, Izaltina de Almeida Guimarães Modesto

O meu nome soa pomposo, isso eu sei. Não duvido nem quando estou um pouco fora de mim, como agora, num limbo sem tempo nem lugar. Gosto de repeti-lo devagar e bem baixinho. Falo comigo mesma, pois já não há ninguém a impressionar com sobrenomes de fazendeiros de outros tempos. Quem se importaria com a viúva do filho do barão do café quando já se vão mais de sessenta anos que o ouro verde se derramou? Acaricio os sons do meu nome. As sílabas ostentosas escandidas em cantilena me fazem bem, é como rezar um terço, repetir uma oração pedindo proteção, e coragem.

O galo no terreiro já começou a função, empurrando com seu canto as galinhas para fora do poleiro, como em todos os dias. Devo seguir os sinais da natureza e levantar-me da cama, embora hoje desejasse uma trégua, algumas horas apenas de descanso e devaneio. Raios de sol entram pelos vidros da janela e pelas frestas da madeira envelhecida, combinam-se com os grãos de poeira que dançam no ar. Eles dançam, eu continuo imóvel. 

Desenhados com o pó das memórias, bailam os móveis de palhinha da sala de estar, o retrato do barão, os castiçais, a mesa de jantar. Chego a escutar o relógio batendo as horas, o rebuliço das crianças, o vaivém dos empregados, as rodas das carroças circulando do cafezal para o terreiro de secagem bem em frente à varanda principal. Lembranças que saltitam pelos espaços vazios do quarto. Mas de que me valem, hoje, as lembranças? Mudarão a penúria em que me encontro, a falta de esperança, esse vazio?
É triste ter que viver restrita à antiga ala de serviço, espremida nos cômodos adaptados à vida simples – alpendre; saleta e quarto; fogão a lenha instalado no quintal para não fumaçar a habitação. Seu Eleutério ficou de vir ver o telhado da casa-grande, me garantiu dar jeito nas cumeeiras corroídas pelo tempo e pelos cupins. Não deve haver remédio para aquela carcaça podre, mas me iludo. 

Nunca fui à escola, deve ser por isso que eu não entendo bem como cheguei nesta situação. A pobreza veio vindo pé ante pé, disfarçando as consequências, levando para longe um filho de cada vez, até que só me sobrasse Salomé. Eu e Salomé a calejar as mãos, eu e Salomé a empurrar a vida, silenciosamente. O que seria de mim não fosse a presença dela? E ainda que o Velho Titonho tenha decidido continuar na propriedade, trabalhando por casa e comida, o homem é de pouca valia, quase tão desgastado e desiludido quanto eu. 

Lanço mais um olhar para os raios de sol na janela, admiro o balé de poeira que já vai se dissipando, me viro na cama com cuidado para não prejudicar os costados. Percebo os sons da fazenda invadindo o aposento. Não se conformam com a minha desatenção, cobram a minha presença no curral, no galinheiro. Até as árvores do pomar andam a clamar por mim. Também pudera, é para hoje a encomenda de Sinhá Maria: sequilhos de araruta, compotas de goiaba e tabletes de doce de leite para os sobrinhos que chegam do Rio de Janeiro. 

Respiro fundo, reúno o que me resta de forças e levanto-me. Diante do pequeno oratório, ajoelho-me. Aperto os dedos - polegar e indicador acariciando as contas do terço -, e sigo repetindo a oração: i-zal-ti-na-de-al-mei-da-gui-ma-rães-mo-des-to; i-zal-ti-na-de-al-mei-da; gui-ma-rães-mo-des-to; gui-ma-rães-mo-des-to... Amém.

Ilustração: Angela Cotrim, aquarela e grafite sobre papel, 2020

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Texto finalizado no curso Texto Puxa Texto, da Estação das Letras, coordenado pelo professor Juva Batella.