segunda-feira, 12 de junho de 2017

E se você ainda me amar

Não fala nada, não fala! Preciso recompor a respiração. Nem sei como tive fôlego pra escalar este lance de escadas. A idade pesou nestes últimos anos, mas deixa estar, este assunto não te interessa, eu sei. Ficou surpreso por me ver aqui? Não precisa disfarçar, a sala está vazia, somos só nós dois outra vez.

Você está diferente. Desculpe o riso, não pude me conter, acho que é nervosismo, mas a falta do bigode deu destaque aos lábios finos, tão apertados, quase imperceptíveis. Ficou engraçada esta ausência de boca num ser repleto de palavras. Os cabelos estão mais ralos e o corpo mais magro; aposto que precisou de auxílio para vencer os degraus do térreo até aqui. Você nunca vai dar o braço a torcer, embora não seja vergonha nenhuma precisar de ajuda nesta sua idade. Acha que eu esqueci? Sei o dia, o ano e até a hora em que você nasceu, e a minha cabeça ainda está boa para os cálculos.

Só não sei dizer direito porque fiz questão de logo vir te ver. Sabe quanto tempo faz? Eu contei cada dia, cada semana, cada mês. Dez anos! Não fala nada, por favor, não adianta tentar se explicar, já imagino todas as suas desculpas. São como frágeis bolhas que, no ar, se desmancham, respingam nos olhos e só me fazem chorar. 

Às vezes, eu penso ter sido orgulho o que te motivou. Um espírito iluminado encarnado num corpo vigoroso – era assim que você se percebia, não era? Superior a cada ser humano à sua volta - esposa, filhas, todos. Essa pose de macho confiante é só pose, só casca. Por dentro, um ego enorme ao lado de um buraco que nada tampa, nem a música, nem nenhuma mudança de endereço, de cidade, de planeta. Olha, é difícil admitir, mas preciso confessar: o orgulho foi meu também, eu amava a minha própria face refletida no seu carismático espelho. 

Incrível como você reage, sempre foi assim. É só eu começar a falar sobre mim, quer dizer, sobre nós, que você fica com esse ar distraído, alheio, como se nada te dissesse respeito. Finja o quanto quiser, hoje não vai me calar.

No início, eu não me preocupei muito, já tinha me acostumado a tocar a vida apesar da sua ausência. Meses e meses longe de casa por causa dos shows... Mas havia a certeza da volta, e do amor que você dizia sentir. Sem muita pressa, o tempo foi borrando as minhas convicções. Só me dei conta do real estrago quando a nossa vizinha, lembra, aquela beata que vivia nos atormentando com insinuações maldosas, tocou a campainha para me dar a notícia. Ela revirava os olhos e torcia as mãos enquanto pronunciava cada sílaba, num dissimulado constrangimento. Demorei pra compreender a mensagem – alguém havia visto você no Uruguai, numa estância perto de Montevidéu. A vizinha se manteve em pé, à porta, saboreando o baque no meu corpo, e os meus gritos: “No Uruguai! Uruguai?”. Talvez ela não tenha entendido o meu desespero, depois de tantos anos eu já não deveria estar anestesiada? Mas você entende: quebrou-se o espelho que nos refletia. Foi covardia o que te motivou, só pode ter sido covardia, fraqueza, baixeza mesmo, ir se refugiar num país em que tínhamos, um dia, sido felizes. 

Tive ganas de pegar o primeiro avião. Não pra te ver, não... Eu arrancaria e traria de volta o simbólico cadeado colocado na grade da fonte, vomitaria as carnes tenras e o vinho tinto das celebrações, apagaria cada pingo de alegria espalhado nas pradarias. Não fui. Tive medo de romper de vez o fio de seda que nos unia. E se você ainda me amasse, como nos meus sonhos mais secretos? E se me amasse, como naquela risível história tantas vezes repetida nos encontros da família? Lembra? O marido avisa à esposa: vou sair pra comprar cigarros. Volta seis meses depois, maço de Hollywood nas mãos, a chave da casa balançando do bolso da calça. Entra, beija a testa da mulher e a vida segue como se mais nada houvesse. Você ainda fuma? Não importa! Se ainda me amar, podemos brincar de comprar cigarros, e interpretar a família feliz como se mais nada tivesse havido. O beijo na testa eu posso te dar agora.

Estou me sentindo um pouco tonta, me deixe sentar ao seu lado. Deve ser a labirintite. Se as meninas estivessem aqui - não, elas não quiseram vir te ver - diriam que essa tonteira é o corpo reagindo às loucuras da mente. Que é uma total insanidade não arredar pé do nosso apartamento nem admitir trocar a fechadura da porta da frente. Elas zombariam de mim por você não ter mais a chave de casa.

Espera, não precisa falar nada, seus amigos estão chegando. Vou deixar que se aproximem e cantem as velhas canções, façam as orações, prestem as homenagens. O sol está forte, não pretendo seguir o cortejo, você me desculpará, por certo. Talvez nos reencontremos em outro tempo. Outro lugar? Quem sabe? Mas isso, por favor, só se você ainda me amar.

(Conto produzido como exercício da Oficina de Criação Literária
do professor Marcelo Spalding)

Um comentário:

RRS disse...

Boa tarde. Bastante interessante. Gostei dessa parte: "O marido avisa à esposa: vou sair pra comprar cigarros. Volta seis meses depois, maço de Hollywood nas mãos, a chave da casa balançando do bolso da calça. Entra, beija a testa da mulher e a vida segue como se mais nada houvesse."

Continua a escrever. Abs.