terça-feira, 27 de agosto de 2019

Vinte e Quatro Horas – um pouco mais, um pouco menos...

Sábado à noite. Falam-se pelo celular. Combinam de se encontrar no dia seguinte, quando a mãe voltar de viagem. Despedem-se saudosas. A filha pega a chave e sai. A mãe acomoda-se no sofá. 

Tarde de domingo. Encontram-se como o combinado. A filha, emocionada, acarinha-lhe o rosto jovem. Contempla os fios curtos e grisalhos, marca registrada dos últimos tempos. Quer espiar as tatuagens que cobrem o corpo da mãe, mas não pode. Só há flores, a cor das flores, o cheiro das flores. Flores cobrem os desenhos dos braços, das pernas, do tronco. A filha dá-lhe um beijo e sai. A mãe demora-se onde está. 

Segunda pela manhã. A filha acorda, embora não se possa dizer que tenha dormido. Passou a noite a recordar cada ano, a imaginar cada ano, a inventar histórias para cada um dos 49 anos da mãe. Na sala, esbarra com o jornal sobre a mesa do café. Lê a coluna do dia e revê rosto, cabelos, tatuagens – dos braços, pernas e tronco. A filha sorri tristemente e sai. A mãe irradia-se pela casa.

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Dando Crédito à Crônica

Leitura e escrita são como irmãs siamesas, vivem grudadas. O que acontece a uma interfere diretamente na vida da outra. É por isso que quem quer aprender a escrever melhor precisa mergulhar em atividades de leitura associadas às de produção textual. Em julho, comecei a frequentar a Oficina Online Escrevendo Crônicas, coordenada por Rubem Penz. O meu primeiro exercício foi selecionar três crônicas produzidas em épocas diferentes e analisá-las a partir de categorias como tema, formato e linguagem. E como deveria apresentar o resultado desta leitura minuciosa? Escrevendo uma crônica, claro! 

A etapa inicial da tarefa não me trouxe grandes dificuldades, pois um exemplar de As Cem Melhores Crônicas Brasileiras, organizada por Joaquim Ferreira dos Santos, habita a minha estante desde que descobri que o que escrevo se encaixa no gênero. O meu gosto pessoal foi o critério básico de seleção. O texto me prendeu a atenção? Me comoveu ou me fez rir? Pareceu-me elegante no estilo? Então, me serve. Depois, tratei da questão do ano de produção e, assim, decidi-me pelas seguintes crônicas: 
A carpintaria literária de Rachel de Queiroz me deixou maravilhada! Para responder a uma pergunta corriqueira - qual o seu maior desejo para o ano seguinte – a autora transita da mais livre transgressão às convenções sociais à submissão poética provocada pelo coração. Os mesmos elementos que lhe servem, nos primeiros parágrafos, para afirmar os desejos libertários– o mundo, o homem amado, a pátria, o público leitor, a família, os amigos – são virados pelo avesso na segunda parte do texto. A autora entabula uma conversa consigo mesma e cria um fluxo de linguagem bastante ágil: mistura as formas de tratamento (tu, vós e você), se vale de superlativos, e tempera o vocabulário rebuscado com expressões da conversação comum. O resultado desta mistura é um texto delicado capaz de emocionar muitas pessoas, mesmo as menos habituadas ao português padrão da primeira metade do século XX. 

A crônica de João Ubaldo também parte de uma temática costumeira: encontros (e desencontros) de leitores e escritores em alguma situação de vida cotidiana. Só que o autor, diferentemente de Raquel, organiza todo o texto em diálogos, um desafio e tanto, pois não há nenhuma narrativa ou explicação para a fala dos interlocutores. Frases curtas e diretas, linguagem coloquial, interrupções e hesitações, vocabulário ligado aos hábitos de Ubaldo na Bahia, sublinham o humor do texto. Pela leitura, fiquei imaginando o desconforto do escritor, conhecido por sua impaciência com os tolos e os arrogantes, e ri muito com a inconveniência do cidadão que o aborda no bar. 

Antônio Prata me fez rir, mas de nervoso. Sua ferramenta linguística é a ironia, usada para revelar idiossincrasias, suas e as de seus companheiros intelectuais de esquerda. Numa conversa com o leitor, constrói uma narrativa cíclica, baseada na repetição de expressões capitaneadas pelo advérbio meio: meio intelectuais, meio de esquerda, bares meio ruins, reforçando o caráter ambíguo das convicções e escolhas de seus pares. Uma dura crítica marcada por referências contemporâneas e urbanas, como Vejinha e MTV; petit gâteau e cachaça Salinas; ritmo reggae e chinelo Rider, em contraposição a um idílico nordeste. A crônica foi escrita há 14 anos, mas questões relativas aos erros da esquerda, em especial ao distanciamento do povão, são feridas ainda bem abertas para nós, daí o riso nervoso e a sensação de que Prata deveria ter sido levado mais a sério. 

Por intermédio das narrativas em primeira pessoa, Raquel, João e Antônio se mostram por inteiro aos leitores. Sem os escudos protetores dos personagens, trabalham de peito aberto para que a realidade banal seja tocada, e transformada, pelas extravagâncias da ficção. E eu, aqui, apavorada diante do tamanho da tarefa dos cronistas, olho com cuidado minhas pretensões literárias, e praguejo: Te dana, Ana Beatriz, te dana!

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