terça-feira, 25 de dezembro de 2018

A Vida Privada das Árvores

Eram vizinhas há anos, mas mantinham-se distantes, ensimesmadas. Preocupavam-se em gerar seus frutos, envolviam-se em seus cíclicos cotidianos. 

Cássia, de corpo esguio e alma temperamental, tinha as suas manias: vestir-se sempre de amarelo, manter os galhos bem limpos e só se interessar por espécies cujas flores, pela cor ou formato, a fizessem lembrar-se de si mesma, motivo pela qual a amendoeira da calçada oposta nunca tenha merecido muita atenção de sua parte. 

Amendoeira, por sua vez, já tinha percebido certo incômodo vindo do outro lado da rua: sons lamentosos, muxoxos entre folhas, mas agia com discrição, fiel à sua índole silenciosa. 

No dia em que, finalmente, se olharam, Cássia perdera a compostura. Não suportava mais a dubiedade que a assaltava na origem, uma cisão que afetava a sua identidade. Sabia que muitas árvores viviam calmas com seus múltiplos nomes, sentindo-se até orgulhosas por serem tantas, mesmo sendo uma só. Isso não a consolava, sofria com a constante dúvida e o enganoso conhecimento dos passantes: É uma Acácia? Com certeza é uma Chuva Dourada! Ouvi dizer que é uma Acácia-Imperial!

É Cássia!, respondia ela, irritada, mas já quase sem ânimo pelos sucessivos mal entendidos, pois contestação de árvore não serve à percepção humana, muito menos sensibilidades de árvore. 

Naquele dia em que finalmente se olharam, Cassia reagira a mais um equívoco nominal com coléricos berros. Amendoeira não pôde disfarçar: ouvira todos os gritos, impropérios, desatinos. Achou por bem interferir. Ciente do temperamento volúvel e bisbilhoteiro dos humanos das redondezas, agitou um pouco os galhos, como se uma rajada de vento a tivesse atingido, e despejou as folhas avermelhadas do outono sobre a rua, sobre a calçada. A chuva inesperada atraiu as atenções, e o fascínio deslocou-se da discussão sobre o nome da árvore com luminosos cachos amarelos para a belezura do chão colorido. Os mais práticos, contudo, preocupados com os próximos temporais e o entupimento dos bueiros, trataram de seguir o seu caminho. O fato é que Cássia, liberada da tensão do conflito, foi recuperando a serenidade. E agradecida pela artimanha de Amendoeira, resolveu dedicar-lhe, excepcionalmente, algumas horas de convivência diária. 

No início, falavam sobre amenidades – o sol forte, a falta de sol; a chuva que ontem caiu, a falta de chuva; os pássaros mais frequentes, os que raramente aparecem. Aos poucos, passaram a temas mais vegetais: de inflorescências, frutos e sementes a lagartas, fungos e outras pragas. Concluíram que, não fosse o auxílio da mata no cocuruto do morro ao final do quarteirão, estariam exaustas pelo trabalho de fotossíntese. 

Com a amizade crescente, as duas foram se sentindo mais livres para confidências. Cássia revelou seu total desprezo por pessoas que prendem xaxins de orquídeas semimortas em troncos de árvores sadias. É um total desatino distribuir por aí estas flores estrangeiras, com suas escandalosas cores, revoltava-se ela. Amendoeira desconfiou que a inveja ou o ciúme motivassem a antipatia de Cássia, mas preferiu não se aprofundar em sentimentos tão íntimos. 

Em vez disso, contou-lhe sobre seu especial afeto pelos porteiros – personagens que, como ela, vivem presos aos seus espremidos territórios, impactados pelos fragmentos de vida que lhes passam em frente. Pena serem tão baixos, ocupando postos ao nível do chão, lamentava-se Amendoeira, que aprendera a tirar proveito de sua natureza corpulenta. Ela confessou à amiga que lança os longos e esparramados galhos para o alto dos prédios, e os faz aproximarem-se, convenientemente, das janelas, transformadas em múltiplas telas de TV. E que assiste, atenta, às cenas privadas de amor, às sequências de trabalho e ócio, aos momentos de desencontro e reconciliação, criando com cada morador um forte laço de proximidade. E quando Cássia a interrompeu para queixar-se por só conseguir alcançar grades e cortinas cerradas, Amendoeira intuiu sua verdadeira vocação. Desde então, reúnem-se no silêncio das madrugadas, depois dos garçons fecharem as portas dos bares e os moradores de rua aquietarem-se em seus leitos improvisados. E Amendoeira, convertida em Sherazade, narra seus contos de todas as noites, incluindo suspenses e dores, mesclando seres de carne e osso a novos e fantásticos personagens. 

Cássia, inebriada com os arroubos ficcionais da amiga, mantém-se atenta até que os primeiros raios de sol venham pôr fim à contação. Suas noites mais felizes, porém, são aquelas em que Amendoeira tece histórias sobre a mulher estranha e solitária do sexto andar que, de tanto gastar seus dias em leituras, transformou-se numa criatura muito pálida, pele ressecada e rugosa como papel, olhos aumentados e vermelhos, de cuja boca brotam parágrafos dos textos preferidos. Cássia a batizou de Blanca, em parte por sua aparência física, que embora nunca tenha visto, consegue imaginar com perfeição, mas principalmente pela presença constante, nos monólogos da moça, de uma certa Blanca Trueba. 

Para o deleite de Cássia, Amendoeira põe-se a repetir as falas de Blanca que, dependendo do humor e das mais recentes leituras, descrevem a secura da infância do menino Graciliano, explicam cada uma das instáveis conquistas de Eurídice Gusmão, ou narram os desatinos do ancião que, enfermo e próximo à morte, desata a relembrar o passado.

Mas, quando o tema da moça pálida é a vida privada das árvores: um álamo e um baobá que conversam sobre fotossíntese, esquilos e sobre as vantagens de pertencerem ao reino vegetal, Amendoeira sente-se livre para também fantasiar, e inventa situações como aquela do flamboyant e do coqueiro que, plantados à beira da Lagoa, vivem inconformados com a disposição dos humanos para o exercício físico. O conto predileto de Cássia, no entanto, tem como protagonistas uma amendoeira-da-praia e uma cássia-imperial, vivendo há anos em lados opostos de uma mesma esquina, numa rua tranquila da cidade do Rio de Janeiro.
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Conto escrito a partir da leitura e da resenha do romance de Alejandro Zambra, a Vida Privada das Árvores.
Para ler a resenha, clique em: Um dia um caminhão atropelou a paixão
Fotos - Mario Oliveira

sábado, 24 de novembro de 2018

Um dia um caminhão atropelou a paixão

Nenhuma testemunha se apresentou, e não se sabe ao certo o que aconteceu. Há quem diga, sem muita convicção, ter ouvido os sons do acidente: o barulho estranho de um possível motor, uma freada brusca, a estridência de uma buzina, um baque seco, sem nenhum grito ou lamento – poucos e inconsistentes relatos para esclarecer os detalhes do atropelamento. Teria sido possível ao casal apaixonado pressentir o perigo? Evitá-lo? Talvez estivessem, ele e ela, com o olhar aprisionado, os ouvidos viciados nas velhas e íntimas canções, incapazes de perceber a urgência da situação.

É essa sensação de visão embaçada que marca a literatura do chileno Alejandro Zambra. Pelo menos, foi assim que me senti ao final da leitura do livro que reúne dois de seus romances: Bonsai e A Vida Privada das Árvores. Fica-se sabendo, de antemão, que Julio e Emília, protagonistas da primeira narrativa, e Julian e Verônica, da segunda, terão seus momentos de felicidade atropelados pela presença potente do desencontro, da incerteza e da morte. Mas não há como explicar os desvios e tropeços das histórias de amor.
As lacunas fazem parte do estilo narrativo de Zambra que, como ele mesmo relata no prefácio, escreve por subtração, podando o texto como a um bonsai, para que dele só reste a essência da forma textual, indícios mínimos que instiguem a ação do leitor na construção da completude da obra. Completude parcial e subjetiva, acrescento eu, enquanto tento identificar as pistas e os porquês surrupiados dos romances. Confesso que a economia de Zambra me incomodou um pouco e ficou o desejo de conhecer mais a fundo os personagens. Por outro lado, tivesse eu, após a leitura, me considerado plena de sentidos, talvez não me sentisse desafiada a escrever esta resenha. Deve ser o que nos diz a Psicanálise: se algo nos falta, a gente precisa criar. 

Achei curioso, e também genial que, embora fatos sejam deliberadamente suprimidos, o autor use o recurso da repetição para sublinhar aquelas ideias que deseja oferecer aos leitores. Há palavras e expressões reprisadas nas orações e parágrafos; informações são reforçadas ao longo dos capítulos, criando ciclos verbais que se retroalimentam. Com competência, e a favor da potência do texto, ele ignora a recomendação de que a repetição deve ser evitada pelos escritores. 

Os dois romances são, ainda, uma homenagem literária à própria literatura – Zambra é professor e crítico de literatura. Os personagens dos dois romances se enredam em processos de leitura e escrita: discutem os clássicos antes de fazerem amor, ganham a vida dando aulas de espanhol, dedicam-se longamente à escrita “daquele” livro essencial. Julian, por exemplo, é tão apaixonado pelas palavras que inventa histórias sobre árvores e as conta, todas as noites, para a enteada. 

Aliás, quando li, já há algum tempo, uma resenha sobre os livros do escritor, foi o assunto peculiar – a existência da vida privada de um álamo e um baobá - que primeiro me chamou a atenção. Só que, no romance, as árvores são simples coadjuvantes na aventura amorosa interrompida repentinamente. Na falta do empoderamento vegetal esperado, o jeito vai ser eu mesma inventar um conto sobre amendoeiras e ipês, figueiras e damas da noite, ou flamboyants e coqueiros. Escrever sobre as alegrias e desventuras destas personagens numa cidade linda e insana como o Rio de Janeiro. Alguém me acompanha?
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Bonsai + A Vida Privada Das Árvores
Alejandro Zambra - Tusquets Editores


No título, verso da música Grand”Hotel, de Paula Toller e George Israel
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Para ler o conto que nasceu desta resenha, clique em A Vida Privada das Árvores.

terça-feira, 4 de setembro de 2018

Sem Explicação

- Calma, pensa melhor. Você deve ter ido lá! Pelo menos uma vez, na infância, com certeza – pondera o interlocutor, inventado pra debater comigo mesma e tentar acalmar o coração, enquanto vejo, domingo à noite, as imagens na TV.

- Espera, não tô conseguindo nem raciocinar com esse fogo lambendo os meus olhos e a minha memória - retruco amargurada. Talvez no primário... Lembro-me de um passeio da escola a uma ilha da Marinha, na Baía de Guanabara. E de ter ido ao Museu da República com a minha mãe. Só isso! Não, nesta época eu não conheci o prédio.

- Pode ter sido com a sua avó, naqueles programas planejados pra depois da Missa das Crianças no Largo do Machado
 – ele argumenta, tentando me reanimar.

- Acho que não. Só me vêm à cabeça os filmes com a Rita Pavone no cinema Azteca, sessão das dez da manhã. Às vezes, assistia aos desenhos do Tom e Jerry. E nada disso acontecia na Quinta da Boavistacompleto já sem esperanças de uma saída honrosa, ao mesmo tempo em que as labaredas explodem através das janelas da grande construção.

- Mas depois de adulta, depois de ter se tornado uma EDUCADORA – enfatiza, sem piedade – é claro que você conheceu o lugar!

O telhado desaba sobre as minhas convicções, mas, com o baque, esboço uma reação.
- Alto lá! Eu tenho muito orgulho de sempre, sempre ter visitado com as crianças os mais variados espaços culturais da cidade! Dos mais tradicionais, dedicados às artes, história, ciência e tecnologia, aos pequenos centros das vizinhanças... É muito injusto me questionar sobre isso!

- Então, não há por que se martirizar. O Museu Nacional está entre estes centros de cultura que você conheceu acompanhando os alunos, certo? – desfere, em brasa irônica, a pergunta final. Pra completar, a falta de água mostrada na TV, me desespera.

Calo-me, sem nenhuma explicação plausível. Fecho os olhos. Somem as imagens perturbadoras, os efeitos do incêndio, não. Permanece uma incredulidade triste diante do descaso de tantos, do meu descaso inclusive. Uma saudade imensa, pelo o que não vivi, queima dentro de mim.

O Incêndio - Portinari - 1955

sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Alice no Maravilhoso País das Palavras

Alice tem 7 anos e, desde bem novinha, já sabíamos que ela era muito amiga das palavras. Aprendeu a falar antes do tempo regulamentar e logo passou a nos surpreender com expressões e concordâncias sofisticadas, usadas para se comunicar e se fazer presente no mundo real. Aos 3 anos, lançava mão de todos os seus recursos verbais para inventar histórias mirabolantes, geralmente com bichos, e houve um tempo em que um amigo imaginário era figurinha fácil nas suas narrativas.

Agora, que está se alfabetizando e percebendo a relação da fala com a escrita, a danada resolveu escrever histórias e, esta semana, decidiu experimentar o gênero poesia. Ela me contou que seu processo de criação exige sossego e concentração e, para isso, recolhe-se ao seu quarto. Na porta, coloca uma plaquinha vermelha indicando não querer ser interrompida.
  
Quando li a sua mais recente produção, tive certeza que o manuscrito deveria ser publicado no Blog. A autora, felizmente, concordou com a ideia e ditou o título para que eu o incluísse no poema.

Alice não sabe, mas, com sua coragem de poetisa, me incentivou a buscar outras possibilidades literárias, para além das crônicas, gênero no qual me sinto mais confortável. Pode ser que eu me aventure, abra o coração e escreva um verso ou outro, e, de repente, me veja transformada em passarinho emocionado. Assim, iremos juntas, eu e ela, de mãos dadas por este maravilhoso país das palavras.




A Luz do Campo
                           Alice Oliveira

O passarinho canta
com magia e emoção
Só dá pra cantar
dentro do coração.

quinta-feira, 2 de agosto de 2018

ZDP

- Lembra o que eu te expliquei sobre a zona de desenvolvimento proximal? – pergunto assim, sem mais nem menos, ao Mario, sentado na poltrona ao meu lado. 

- Ahn?? - retruca ele, afastando o fone de um dos ouvidos, mas sem tirar os olhos da telinha em frente. 

- Zo-na de de-sen-vol-vi-men-to pro-xi-mal, - repito pausadamente - um dos conceitos de Vygotsky que mudou a minha cabeça de pedagoga... Lembrou? 

- Ah! Tá! - digna-se ele a responder, para logo em seguida reacomodar o fone e voltar toda a sua atenção para a sequência de imagens animadas na TV. 

Na falta de interlocutor, e aproveitando o tédio das longas horas de viagem no avião, dediquei-me a investigar por que a teoria do Vygotsky havia assim, sem mais nem menos, assaltado meus pensamentos. Relembrei os estudos no mestrado em Educação na PUC e o quanto as contribuições do psicólogo russo me valeram como professora e supervisora pedagógica na Educação Infantil. Em especial o tal conceito de zona de desenvolvimento proximal (ZDP): a distância entre o nível de desenvolvimento real da criança, medido pelos conhecimentos que ela domina com independência, e o nível potencial, aquilo que está prestes a aprender, mas só consegue realizar com a colaboração de um adulto ou de um colega mais capaz. Assim, a maior alegria que Vygotsky me proporcionou - tratando-se não só das crianças, mas de qualquer indivíduo aprendiz - foi a compreensão do aspecto social da aprendizagem, da importância do outro como mediador da aquisição de novos saberes. E, como consequência, o fim da necessidade de se fazer silêncio e aprender tudo sozinho, princípios, até então, inquestionáveis da educação tradicional. A aprendizagem, como a vida, é a arte do encontro. 

Pronto! Está aí o fio que me reconecta ao devaneio do início do texto. Em nenhuma outra viagem foi tão marcante a presença de companheiros mais capazes a nos orientar, a simbolicamente deixar as marcas no chão e nos dizer: vão por aqui, o caminho é mais bonito. Pessoas que, carinhosamente, se desdobraram para compartilhar experiências de vida, na Inglaterra e na Escócia, e rechear a nossa própria viagem com momentos que, sozinhos, não teríamos condições de vivenciar.
Londres é uma cidade que proporciona caminhadas muito boas – escreveu-nos Marcelo na sua carta-depoimento de ex-morador, incluindo dezenas de pistas sobre como desbravar a capital inglesa. Seguindo os seus passos, cruzamos a pé os bairros de Kensington, Mayfair e Marylebone, acompanhamos o Tâmisa em Southbank e nos encantamos, como vocês já sabem, nos passeios pelos parques verdes. Para ouvir boa música, e a preços não tão salgados, a dica era a programação da igreja St Martin-in-the-Fields. E lá fomos nós, num anoitecer de sábado, apreciar Vivaldi e suas Quatro Estações, além de conhecer outras peças para violino de Bach, Mozart e Pachelbel. No quesito refeições, as sugestões ajudaram a nos manter bem alimentados sem abalar substancialmente as finanças. Côte Brasserie tornou-se a nossa rede de restaurantes predileta, com a facilidade de encontrarmos uma filial em qualquer lugar da cidade. Embora não estivesse presencialmente conosco, Marcelo foi lembrado a cada nova experiência como um indispensável mentor.
Mais que companheiros de viagem, Ângela e John foram nossos “pares mais capazes” em incontáveis situações. Uma das mais marcantes pra mim foi caminhar, nos arredores de Oxford, por campos floridos, entre criações de ovelhas e plantações de canola para, ao final do trajeto, jantar no pub The Nut Tree. Sem eles, nem saberíamos que os proprietários de áreas rurais são obrigados a deixar trilhas livres para pedestres e teríamos, com certeza, receio de cruzar as porteiras do caminho.

Será que teríamos tido coragem, e competência, para nos hospedar em um chalé-moinho no meio das Trossachs – cadeia de montanhas separando as Terras Altas das Terras Baixas na Escócia? Aprendendo junto e trabalhando em colaboração, abastecemos a lareira, dominamos o aquecimento elétrico, cozinhamos, comemos e bebemos, ouvimos diferentes histórias, fizemos muitas perguntas e demos boas risadas.
E o que dizer dos piqueniques nos mais aprazíveis e improváveis lugares? Das proximidades da muralha de Adriano às margens dos lagos escoceses; com o lanche arrumado nas tradicionais mesinhas de madeira ou displicentemente disposto na toalha xadrez inspirada nos tartãs escoceses.
Foram tantas as experiências de aprendizagem nas quais a nossa zona de desenvolvimento proximal foi acionada nesta viagem que é impossível condensá-las num só texto. Não sei se o Moska, compositor carioca, conhece a teoria de Vygotsky, mas hoje escutei uma antiga música dele que, numa interpretação livre, explica de modo poético a nossa vivência. “Gosto quando olho com você o mundo. E gosto mais do mundo quando posso olhar pra ele com você”.

Obrigada, Ângela, John e Marcelo, por nos emprestarem o olhar.


Para ver outras imagens, clique aqui: Galeria de Fotos - ZDP
Para saber mais sobre a viagem, leia também: 1- Viagens e Histórias; 2- Elegância Verde

quarta-feira, 4 de julho de 2018

Elegância Verde

Foi no início da viagem que a minha mania linguística começou a se manifestar. Era só cruzar uma rua arborizada ou avistar um pequeno jardim, que eu já concluía: “Como Londres é verde!”. Circulando pelas praças e pelas áreas externas dos museus, não me cansava de constatar: “Londres é tão verde, né?”. Mas eu realmente fiquei repetitiva nas visitas aos grandes parques da cidade. É que Londres tem uma coleção excepcional de espaços amplos, e verdes, e belamente planejados, disponíveis para a fruição das pessoas nos mais diferentes bairros. Muitos deles são chamados de parques reais por terem sido propriedades dos monarcas, e de uso exclusivo de seus familiares e amigos. Com o passar do tempo e o crescimento da área urbana, eles foram sendo, para a felicidade geral, incorporados à vida da população.

Um dos meus parques preferidos foi o Regent’s Park, com amplos gramados, trilhas para caminhada, um enorme lago repleto de aves e peixes, e jardins floridos dentro de outros jardins floridos. Já o Mário caiu de amores pelo St James’s Park, encravado entre palácios, numa das áreas mais clássicas da capital. Árvores majestosas, patos e marrecos, flores de todas as cores e alamedas sombreadas acolhem os visitantes. Olhando a vista do parque ao cruzar a ponte, logo entoei o bordão: “Que lindo! Londres é muito verde, mesmo!”.

St James's Park
Ainda visitamos o Holland Park, invadido por londrinos esticados no gramado ensolarado, e o Kensington Gardens que, além de toda beleza natural, também abriga fontes, estátuas e um memorial em homenagem à princesa Diana. Em cada passeio, as mesmas exclamações verdes me acompanhavam.

E de nada adiantou a Ângela, brasileira há anos morando na Inglaterra, e especialista em árvores e jardins, explicar que, tivesse eu chegado dois meses antes, durante o inverno, veria tons de marrom e cinza predominando na paisagem, e não toda a exuberância que me cativou. Ouvi o discurso com atenção, mas, teimosa, insisti: “Sabe que eu estou impressionada como a cidade é verde!”.

Depois de nos despedirmos de Londres, rumamos para o centro da ilha, e, embora o verde não tenha perdido lugar nas minhas manifestações, precisei temperá-lo com o amarelo das plantações de canola, o branco das centenas de ovelhas e o multicolorido das flores silvestres que se alastravam em meio aos prados. Nesta região rural, tudo me pareceu perfeitamente ordenado: árvores e arbustos em conjuntos harmônicos distribuídos pelos campos; ondulações discretas de altitude; sólidos muros de pedras riscando os espaços. “Que elegância tem o verde da Inglaterra!”, passei a analisar. Foi quando notei que um novo conceito tinha se intrometido na minha percepção, e na minha linguagem.
Avebury Stone Circle
Na volta da viagem, relendo Os Vestígios do Dia, de Kazuo Ishiguro (Prêmio Nobel de Literatura de 2017), descobri que tenho companhia nesta admiração pela natureza inglesa. O mordomo Stevens, personagem do romance, relata o quanto a beleza dos campos o impactou:

“Cheguei, então, a uma pequena clareira — sem dúvida, o local a que o homem havia se referido. Aí deparei com um banco, e, de fato, com uma vista das mais maravilhosas, dominando quilômetros e quilômetros de campos em torno. O que se via era sobretudo campo sobre campo, rolando até a distância. A terra subia e descia suavemente, e os prados eram delimitados por moitas e árvores. Em alguns lugares distantes havia pontos que supus que fossem carneiros.” (p.36)
Vista da Broadway Tower - Cotswolds
O que eu identifiquei como elegância na paisagem da Inglaterra, Stevens caracteriza como grandeza. “E, no entanto, o que é exatamente essa grandeza?”, pergunta-se ele, para logo em seguida responder:

“Diria que é a própria ausência de drama ou espetaculosidade óbvios que distingue a beleza da nossa terra. O que é perfeito é a calma dessa beleza, a sensação de contenção. Como se o país soubesse da sua própria beleza, e não sentisse nenhuma necessidade de proclamá-la.”(p.39)

Na narrativa de Ishiguro, recordei a minha jornada pelos discretos cenários ingleses, mas senti muita pena por Stevens não me acompanhar no restante da viagem pela Grã-Bretanha. Por força da profissão e do temperamento, ele não se afasta da familiaridade confortável da mãe-pátria. 

Fiquei curiosa sobre o que diria o formal mordomo ao se deparar com o exibicionismo das paisagens da Escócia: dramáticos vales, latitudes extremas, terras altas e tanta fartura de água. Talvez se escandalizasse diante da falta de comedimento escocês, ou, quem sabe, secretamente invejasse os arroubos das terras desavergonhadas dos vizinhos ao norte.


Para ver outras imagens, clique aqui: Galeria de Fotos - Elegância Verde

Para saber mais sobre a viagem, leia também: 1- Viagens e Histórias ; 3- ZDP

      terça-feira, 19 de junho de 2018

      Viagens e Histórias

      Cada viagem é uma história original, mas é também só uma parte da história. Um viajante experimenta a tradução subjetiva do lugar visitado, vivencia uma coleção de impressões influenciada por aspectos pessoais: o que gosta e valoriza, o que conhece e consegue enxergar. Cada viagem é ainda o resultado das suas próprias condições: os lugares escolhidos, o sol e a chuva, as pessoas que cruzam o caminho, os acasos. Maio foi mês de viagem para mim, momento de conhecer e interpretar, à minha maneira, diferentes lugares da Inglaterra e da Escócia. 

      Nos trinta dias passados fora de casa, além do Mário, tive um companheiro incondicional: o sol. Protagonista inesperado na primavera da ilha, seguia-nos pelos parques, castelos, lagos, cidades enfim. E até virou piada o fato de sempre escapulirmos das nuvens e da chuva, carregando o nosso sol portátil na mochila. Ou seria o astro um elemento cenográfico, puxado por cabos para o alto do palco a cada vez que entrávamos em cena? Só sei que adorei ver a alegria das pessoas, eufóricas com o tempo bom, correndo para os gramados para aquecer o corpo, ou reunidas nas portas dos pubs, e tagarelando sem parar: “What a lovely weather!”, “Oh! It´s really cool, it´s very sunny!”, “Enjoy these warm days!”.
      Holland Park - Londres
      We certainly enjoyed! Desfrutamos a cena urbana e o campo, os castelos e igrejas, a bela geografia da Grã-Bretanha. E também vivemos altas doses de adrenalina quando nos arriscamos na direção (Mário ao volante e eu de copiloto, claro!), desafiando o cérebro a seguir na mão esquerda mesmo que ele, volta e meia, insistisse em se rebelar. Os dois primeiros dias pelas estradas estreitas da região de Cotswolds foram tensos, foco total no mantra que repetia sem cessar: left, left, left... Depois de alguns sustos e poucos erros (felizmente inofensivos), a paz voltou a reinar no Toyota alugado por uma semana. 

      Ao final deste arroubo de autossuficiência na Inglaterra, embarcamos numa experiência ao avesso e nos deixamos levar, sentados no banco de trás, numa viagem dentro da viagem. Conhecemos a Escócia por intermédio do olhar de um escocês saudoso de sua terra, pupilas emocionadas pelas recordações, e ávido por nos contar histórias de séculos de heroísmo, sangue e lutas. Nesta jornada compartilhada e, por isso, cheia de vivências inaugurais, cheguei ao ponto mais ao norte em que estive no planeta (Ilha de Skye, latitude 57 graus); estabeleci meu recorde de subida em trilha na montanha (Monte Schiehallion, 900 metros); comi (e adorei) carne de veado; e aprendi a apreciar um bom whisky single malt.
      Ferry entre Corran e Ardgour - Escócia
      Se eu conseguir manter alguma regularidade na atualização do Blog, espero contar um pouco mais sobre nossa bela visita às terras da Rainha. Pena que não possa relatar detalhes do casamento real, pois descobri, em cima da hora da cerimônia, que meu chapéu verde limão com plumas roxas era igualzinho ao de Elizabeth II. Num gesto de benevolência, abri mão do convite para não ofuscar a soberana! Mas vocês, com certeza, vão me desculpar por esta falha narrativa, não vão?

      Para saber mais sobre a viagem, leia também: 2- Elegância Verde ; 3- ZDP

      quinta-feira, 22 de março de 2018

      Bye Bye, America

      O nome oficial é United States of America, mas toda a grandeza da nação cabe em uma única palavra. Em qualquer conversação, basta referir-se a AMERICA para que a ideia de país impregnada nestas quatro sílabas seja imediatamente compartilhada: Here in America…; By the way, it’s America; God bless America! Parece óbvio que generalizações como esta ocorram no campo da linguagem, eu sei! Acontece que nos primeiros dias da viagem, enquanto buscava pescar uma ou outra palavra conhecida no mar de sons e significados estranhos, era fisgada pela sonoridade familiar e logo me sentia incluída: 
      - America? Presente! Eu sou América da cabeça aos pés. Let’s talk about ourselves. 
      No instante em que compreendi que, para os americanos, a South America não está no mesmo patamar linguístico, consegui estancar a sucessão de mal entendidos. Quem me salvou foi o Trump, veja só! Quando pairava alguma dúvida, corria a rememorar o slogan da campanha presidencial – Make America Great Again – pra constatar que não, definitivamente, eu e meu interlocutor não falávamos sobre a mesma América. Uma simplificação necessária a fim de me garantir um pouco mais de intimidade com a língua inglesa, já que, mesmo em um trivial bate-papo, sinto-me tão confortável quanto um faquir em sua cama de pregos.

      Depois da visita às montanhas, começamos a nos despedir de America. Os três últimos dias do percurso foram frenéticos: mil quilômetros a dirigir e mais duas cidades a conhecer, antes de fechar o nosso círculo geográfico. Ao final de cada longa jornada, me recriminava por ter planejado lugares demais pra tempo de menos, sentimento que, felizmente, Charleston e Atlanta fizeram o favor de espantar.

      À beira mar, Charleston concentra todo o peso da tradição sulista temperado com uma atmosfera arejada e praiana. No centro histórico não faltam referências ao passado escravocrata e à Guerra Civil - ruas com calçamento de pedra, construções inspiradas nas grandes fazendas algodoeiras, estátuas dos generais vitoriosos e até bandeiras dos Confederados – ao lado de lojas de grife, renomados restaurantes, antiquários e galerias. Os ares da modernidade também estão nos barcos e marinas, nas grandes avenidas e nas pontes cruzando o emaranhado de rios que desembocam no oceano. Tem água, muita água, em toda a região. Tanta água que transbordou do céu, em uma forte pancada na manhã da nossa visita. A chuva ajudou na seleção dos programas que coubessem no calendário apertado: nada de praia ou grandes passeios ao ar livre. Com isso, o dia inteiro que passamos em Charleston até que foi suficiente, mas a cidade merece pelo menos mais 24 horas de reconhecimento. Antes de voltar ao hotel, passamos no Melvin’s pra devorar um legítimo barbecue – pork ribs, BBQ sauce, green beans, cornbread. Ambiente simples e comida muito gostosa.

      No dia seguinte, malas prontas, pé na estrada mais uma vez. A fim de otimizar o roteiro, o pernoite em Savannah teve que ser cortado, mas, no caminho para Atlanta, demos uma passada pelo centro da cidade. Pelo que vimos, a alteração não foi uma grande perda, embora uma chuva forte tenha caído justamente durante o passeio e, talvez, tenha comprometido o nosso julgamento. Pra tirar a dúvida, só mesmo voltando por lá...

      Depois de mais um estirão dentro do carro, chegamos à última parada: Atlanta, a capital da Geórgia. Uma cidade movimentada, entrecortada por eixos rodoviários que facilitam a circulação e o acesso aos bairros mais distantes. Quer um exemplo pra entender a importância econômica de Atlanta? Adivinha onde fica a sede da Coca-Cola? E a da Delta? Sem falar na AT&T, CNN... Mesmo poderosa, Atlanta foi bastante afetada pela crise de 2008 e os altos níveis de desemprego ainda não foram totalmente revertidos. Numa tarde, procurando vaga pra estacionar o carro e ir a uma cervejaria, acabamos passando numa região repleta de moradores de rua, gente em pobreza extrema que parecia aguardar por algo. O garçom do bar nos explicou que aquelas pessoas seriam atendidas por um abrigo, teriam acesso à comida e a um teto provisório. Na avaliação dele, a capital vinha se recuperando gradualmente, e, com a população melhorando de vida, já não eram necessários tantos abrigos quanto em anos anteriores. Não deve ter sido coincidência o fato de, em toda viagem, apenas em Atlanta termos sido abordados por pedintes, pessoas comuns que alegavam ter fome. 
      Se a luta atual da população é pelo resgate da economia, a batalha mais emblemática, encarnada por Martin Luther King, foi contra o segregacionismo racial e pelos direitos civis dos negros. A visita ao bairro onde nasceu o pastor, transformado em área histórica, é uma experiência forte. Há um centro de exposições com detalhes da vida, da morte e da luta de King; pode-se adentrar a igreja batista onde ecoam as suas principais pregações; ou circular pela vizinhança e conhecer as casas do início do século XX que compunham o cenário da sua infância. Além da emoção de ouvir o belo discurso “I Have a Dream” sentados nos bancos de madeira da Ebenezer Church, ficamos especialmente tocados por estarmos lá exatamente num 28 de agosto, o mesmo dia da Marcha de Washington em 1963, quando Martin Luther King convocou America a sonhar com ele. Cinco décadas depois de sua morte, é necessário reconhecer que, entre avanços e retrocessos, há ainda muito o que sonhar, e lutar, para que pessoas de todas as nações, de diferentes Américas, tenham direito à igualdade, à liberdade e à paz. 












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      Todo mundo sabe que quem conta um conto, aumenta um ponto... Eu, pelo tempo que levei pra contar um passeio de 14 dias, devo ter aumentado vários pontos! Mas juro que a minha intenção com os toques ficcionais, as ênfases subjetivas, os enfeites aqui e ali foi tornar mais colorido e sonoro o relato de nossa aventura. E, claro, conquistar mais alguns leitores para o Blog! 😇😇
      Espero que estejamos juntos em outras crônicas. Até lá.

      Para ver outras imagens, clique aqui: Galeria de Fotos - Bye Bye, America
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      quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

      Gente da Serra (2) - Dona Ana e Seu Clarindo

      Cruzamos a porteira da propriedade Brioschi quando rodávamos meio sem rumo pelas estradas à procura de estabelecimentos abertos em 1º de janeiro, dia bem ingrato para se fazer turismo. À frente das casas, numa cancha improvisada na rua de terra batida, um grupo de pessoas jogava bocha. Quase demos meia volta, constrangidos por atrapalhar o lazer da família em pleno feriado. Antes que escapássemos, um senhor interrompeu a partida e veio nos receber. Informou que a lojinha estava fechada, mas que teriam muito prazer em abri-la para que conhecêssemos o café gourmet, os laticínios e os defumados produzidos artesanalmente ali mesmo no sítio. E convocou a esposa para acompanhá-lo na tarefa. 

      Pelo acolhimento do casal, descendentes de imigrantes italianos, e com a conversa correndo solta, o nosso embaraço foi dando lugar a uma sensação de bem estar. A mim, mais que isso, senti uma empatia pela história de vida de Seu Clarindo e Dona Ana - a lida no campo, as dificuldades de se manterem com os recursos da produção rural, sem, no entanto, perder a alegria e o vínculo com a família. Ele, pele clara e faces muito coradas, lembrou-me meu avô Peixoto, fazendeiro e contador de causos, gentil e carinhoso como o Seu Clarindo. Quando comentei sobre esta semelhança, a voz ficou engasgada, mas me recuperei logo com outra provinha do defumado socol que a senhora me serviu.

      Dona Ana, setenta e tantos anos, tem a força das matriarcas. Foi dela a ideia de, há mais de 2 décadas, inscrever a propriedade num programa de agroturismo, criado no município como alternativa de renda para os produtores rurais. Hoje, ainda trabalha duro nos cuidados da casa e na linha de produção, mas reserva as suas tardes para uma de suas mais queridas atividades – o contato com os turistas. Ela aprecia a companhia e a prosa com os visitantes, e, embora tenha um jeito mais tímido que o marido, foi nos contando sobre suas preferências políticas, sobre filhos e netos, preocupações e orgulhos. Reconheci nela o que vivenciei em minha própria família - a determinação e o poder das mulheres simples do interior. Convivi com tias queridas que resistiram às dificuldades da vida isolada e com poucos recursos, mantendo o afeto e a generosidade, vibrando com a visita de parentes e amigos. As minhas “Anas” chamavam-se Inah, Odette, Alice, Olinda, Honorina, Yá... 

      Hora das despedidas, abraços apertados, palavras de agradecimento. Reunimos o café e os defumados comprados e recolocamos o pé na estrada. Circulando por lá, encontramos outras famílias tradicionais trabalhando juntas, além de nascidos na serra que, após um período de "exílio", voltaram a se estabelecer na região - como o Maurício, do Sítio dos Palmitos. Florescem pequenos negócios de produtos orgânicos e naturais, plantação de flores, apiário e cervejaria, tornando as localidades de Domingos Martins e Venda Nova do Imigrante destinos bacanas pra passear e viver.
      imagem da Internet - www.folhavitoria.com.br



      Em tempo: não choro mais pelo Patinho Feio! Com exceção da situação precária das rodovias (também no estado do Rio de Janeiro), a viagem pelo Espírito Santo foi de muito riso e alegria.

      Para ver imagens dos locais visitados, clique em Galeria de Fotos - Serra Capixaba
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      domingo, 21 de janeiro de 2018

      Gente da Serra (1) - Tiago

      Ele é ainda jovem, pela casa dos 30 anos. Filho da terra, cresceu e estudou em Domingos Martins. Já foi guia turístico nas trilhas do Parque Estadual da Pedra Azul, mas com a autorização de passeios independentes, sem necessidade de condutor, a clientela diminuiu e ele migrou para a área da segurança. Agora, faz plantão na entrada principal da reserva, principalmente fora dos horários de funcionamento regular. Foi lá que nos encontramos, no dia 31 de dezembro, depois de subirmos a pé uma estradinha de terra, com sol forte e ataque de mutucas, para descobrir que, por causa dos feriados de final de ano, o parque estava fechado. Mas Tiago salvou a pátria! Com conversa fácil, bom humor e gentileza, contou-nos inúmeros causos sobre a colonização e também sobre a grande formação rochosa de cor azulada que dá nome ao parque. 

      A história que mais gostei não foi inventada por ele, já faz parte do folclore da região, mas Tiago a contou tão compenetrado que, no início, até pensei ser verdade.

      - Já faz muito tempo, mas uma grande batalha se deu aqui. Um menino, com sua espingarda, caçou uma onça feroz. A luta foi tão sangrenta que suas marcas ficaram inscritas na pedra e ainda hoje estão visíveis – narrou com expressão séria e ênfases para sublinhar o suspense.

      - Vem cá, olha daqui – ele nos guiou a um descampado à frente da entrada. Tá vendo os buracos mais à esquerda na rocha? São as pegadas do menino e do bichão. A onça se debateu e estrebuchou diante da morte, por isso as ranhuras e a mancha de sangue ali na base. E o lagarto, coitado, que vinha subindo a pedra na hora em que se deu a peleja, de tão assustado, petrificou-se pelo medo!
      Acompanhamos cada lance da narrativa, e rimos muito, e puxamos mais assunto com o Tiago. Por fim, inebriados, pegamos a estradinha de volta, até com mais ânimo pra enfrentar o sol e as mutucas. 

      Foi muito bom perceber que o desenvolvimento econômico da serra capixaba tem permitido que jovens, como o nosso anfitrião, não precisem abandonar suas pequenas cidades para buscar trabalho e sustento. Encontramos rapazes e moças atuando em restaurantes, bares e pousadas, ou empreendendo em atividades de ecoturismo – como o Ricardo, do Ecoparque Pedra Azul. Tomara que eles continuem por lá, recebendo os visitantes com competência e carinho, o que, num círculo virtuoso, acaba trazendo novos turistas e mais crescimento.
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