quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Sentimento Blue

Não sei como você consegue reagir impassível a toda esta loucura. Tenho que confessar, às vezes sinto até uma ponta de inveja da sua resignação. Eu não me rendo, mas desde ontem só quero fechar os olhos e não sentir nada: nenhuma náusea, tonteira, dor, agulha, soro. Não fossem estes tubos, estaria na praia só de calção! Meu Deus, coisa alguma te abala, nem esta mocinha que a toda hora entra aqui no quarto: cabelos escuros puxados em coque, uniforme em cor pastel, nos pés um par de tamancos brancos para acentuar a natureza higiênica do traje. Piada. Como se eu não soubesse que, antes de chegar ao prédio, a bela circulou pelo metrô lotado e cruzou calçadas emporcalhadas com esta mesma roupa, o mesmo sapato. Desde cedo, ela não dá trégua, borboleteando ao meu redor - fala anasalada, cheia de inhos: “Já acabou o cafezinho, Seu Estevão?”, “Seja bonzinho comigo, ontem o senhor não quis tomar banho”. Hoje, ela ainda inventou de ligar a TV com o propósito de me distrair. E desde quando TV distrai um ser humano? Cinco minutos de programação são suficientes pra me tirar do sério! Eu não me conformo, nunca me conformei, não será agora que vou achar isto normal. Podem fazer a campanha que quiserem, alardear todas as obviedades travestidas de verdades científicas: prevenção, conscientização, acompanhamento – propagandas cacetes, é o que são! Os planos de saúde é que se dão bem nesta história, claro! A cada consulta, a cada exame extra que os médicos inventam, é mais um motivo pra aumentar a mensalidade. E ainda têm a cara de pau de nos enfiar por goela abaixo essa tal de alimentação saudável. Saudável pra quem? Pro meu bolso é que não é! Você sabe quanto custa um quilo de tomate orgânico? Um punhado de linhaça dourada? Não faz muito tempo, entrei, por curiosidade, numa quitanda metida a besta perto de casa, saí correndo antes que tivesse que pagar só pra olhar. Na verdade, eu não ia querer aqueles produtos nem de graça, tão mirrados que davam dó! O problema é que comecei a fantasiar com eles. Semana passada, sonhei que estava perdido em um beco escuro. Um homem me perseguia e ameaçava com um ramo de cenouras raquíticas. Quanto mais eu corria, mais o beco se fechava e o homem se aproximava. Acabei encurralado, as cenouras cresciam, se transformavam em longos dedos, apertavam a minha garganta, forçavam a boca, puxavam minha língua. Borboletinha deve ter ouvido os meus gemidos, as palavras embaralhadas, e achou por bem reforçar o Dormonid, avisando-me que não adiantava gritar pelo Dr. Antenor àquela hora da madrugada. Você não deve ter percebido toda a movimentação, pois dorme como um bebê recém-nascido! 

Mas o que me deixa mais puto é a hipocrisia da cor. Todo mundo critica, condena a ministra, chama de reacionária, só que na hora de se referir ao sexo masculino neste maldito mês, qual a cor escolhida? Qual? E não basta usar laço na lapela, tem que enfiar o logo da campanha no perfil do Facebook, no site da loja, na propaganda do jornal, e, pasme, tingir de azul prédios e monumentos, até o próprio Redentor. Por acaso estátua tem próstata? Ou Jesus Cristo visitava o urologista regularmente? Uma certeza eu tenho: se o Salvador fosse obrigado a encarar o humilhante “exame físico”, reagiria com a mesma ira com a qual expulsou os vendilhões do templo. E eu, eu sou católico praticante. 

Já passou a hora do almoço? Não sei por que me bateu tanta sonolência. É melhor eu parar de falar, esses remédios acabam com as minhas energias. Deixa estar que, mais tarde, os meus companheiros de bar virão me visitar. Ontem eles vieram, eu ouvi as vozes no corredor, mas alguém lá fora deve ter implicado com as risadas deles. Gente feliz não é bem vinda aqui. Hoje ninguém os vai impedir: trarão pataniscas de bacalhau, uma tigela de rabada com agrião e meia dúzia de cervejas geladas. Você prefere Brahma ou Antarctica?

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Mais um texto gerado a partir da Oficina Online Escrevendo Crônicas, coordenada por Rubem Penz, que frequento desde julho. O desafio era fazer uma crônica sobre uma efeméride (uma celebração ou evento que se repete anualmente), abordando-a de uma maneira criativa, diferente da usual. Optei por uma crônica-conto, gênero que permite uma maior liberdade narrativa pela presença dos personagens.