sexta-feira, 6 de março de 2020

Cheiro de Oscar

O olfato é um sentido exigente: não aceita substitutos, dispensa representantes, tem ojeriza a mediações. O que ele almeja é a experiência direta, a cafungada explícita. Trabalha para o genuíno deleite do indivíduo que sente, ou para o seu total desprazer. 

O olfato conhece as manhas dos cheiros, sabe que são dissimulados, que se esgueiram pelas instâncias da vida e, de repente, sem aviso, se fazem presentes e tomam à força as narinas desavisadas. Ele se entrega, sem restrições, aos odores agradáveis, aqueles que aprendeu a associar a um certo bem estar - o perfume das flores da Dama da Noite e do Manacá; a exalação da manga e da goiaba; o aroma do pão assando no forno e do café passado na hora. Mas quando o fedor vem do ralo, quando evoca dejetos, mofo, putrefação, o olfato se contrai, aciona os dedos para que protejam o nariz até o limite, até que não se possa mais suspender a respiração. No instante a seguir, inunda-se de estranhamento e desconforto, e de nojo. 

Dado o seu caráter presencial, é surpreendente perceber que o olfato seja um elemento definitivo numa produção audiovisual. Em Parasita, filme do diretor Bong Joon-ho, que só assisti semana passada, depois que foi distribuído nos plataformas de streaming, a trama é marcada pela percepção do cheiro que emana dos subterrâneos, dos buracos insalubres, cheiro que escancara a desigualdade entre os personagens num dos países mais ricos do leste asiático. As tensões entre os mundos das duas famílias sul-coreanas vão sendo construídas ao longo do filme – locações, iluminação, diálogos e situações entre a comédia e o drama sublinham as diferenças e antagonismos. Mas é a crescente aversão ao odor dos corpos sem lugar, dos que vivem ao rés do chão ou abaixo dele, que faz explodir a violência latente. 

Ao final da exibição, com o nariz perfeitamente conectado à mente, uni-me ao time de admiradores de Parasita, e aos juízes da Academia. E entendi porque ninguém estranhou as premiações recebidas pelo roteiro, direção e melhor filme. É que mesmo antes da cerimônia, já se sentia um doce perfume de Oscar no ar.
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Na Rede:
  • A escrita desta postagem me fez lembrar  O Cheiro do Ralo, filme estrelado por Selton Mello, e dirigido por Heitor Dhalia. Assim como Parasita, trata das relações desiguais entre pessoas: opressão, exploração, degradação. Tudo isso envolto pelo odor que emana do banheiro entupido do escritório do protagonista. É um filme incômodo, até pensei em desistir no meio, mas valeu a pena insistir. Quem se interessar, pode acessar sem custo o Youtube, e tirar as suas próprias conclusões. Clique AQUI