Naquela Estação


Textos devem ser como uma estação: uma parada no meio do caminho, uma oportunidade de encontro, uma alegria pela chegada. Textos devem ser múltiplos como as estações do ano: ensolarados, chuvosos, nublados, aconchegantes, melancólicos. 

Os textos publicados nesta página nasceram do meu contato com pessoas interessadas em paradas ensolaradas, encontros chuvosos, alegrias melancólicas e chegadas aconchegantes. Surgiram de diálogos sobre a vida que corre naquela estação. 

Prontos para viajarem conosco?
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Gertrudes e nós
Agnes Milley
13/04/2020
“Meu Anjo, vamos dormir? Deita aí que eu ajudo a te cobrir. Vou deixar só a luz do corredor acesa. Assim o sono vai chegando de mansinho. Ontem você me pediu que não contasse mais histórias de livros, mas histórias de verdade. Vou então contar uma peraltice da Vovó quando tinha a sua idade, ou um pouco mais."

Morávamos numa pequena aldeia na Alemanha, em uma casa bem grande, mas nossa família ocupava só dois cômodos do andar térreo. O cômodo menor foi transformado em cozinha e lugar para fazer tudo, como comer, estudar, brincar e até tomar banho. No outro cômodo, nós dormíamos. Éramos seis, Mamãe, minhas duas irmãs, Gábi meu irmãozinho e eu. Papai só vinha para casa no domingo. Trabalhava como lenhador, muito longe.

Um dia, Mamãe precisou ir a uma cidade próxima e levou consigo os dois pequenos, Gábi e Kati. Suzi e eu ficamos em casa. Antes de sair ela nos disse: “Nada de rua, vocês têm muito que fazer em casa”. E deixou-nos algumas tarefas. Pouco depois, nossa vizinha Gertrudes bateu na porta. Ela era um pouco mais velha que nós e sempre conseguia que fizéssemos o que ela queria, mesmo nas brincadeiras. Dessa vez ela precisava levar sua vaquinha para pastar e queria nos convidar a ir com ela. Levar a vaca para o pasto sozinha era muito triste. Ela fez até um biquinho de choro para nos convencer. 

Esquecemos os sapatos que deveríamos engraxar, a louça que deveríamos lavar e logo estávamos as três tagarelando pela estradinha de terra a caminho da colina já conhecida nossa. Era primavera e a grama estava verde, viçosa, macia e a floresta atrás de nós vibrava de alegria. Passarinhos e borboletas disputavam um lugarzinho nos galhos novos. De cima da colina víamos nossa aldeia lá em baixo e à esquerda, mais no alto, uma capelinha branca. Quando o sino da capela tocasse, era a hora de voltarmos para casa. Isso aconteceria quase ao escurecer. 

A vaquinha, que nem era tão pequena assim, tinha uma cordinha no pescoço. Era com essa corda que Gertrudes a puxava para lá e para cá. Lá no pasto, a vaca só queria ir para bem longe de nós que continuávamos a rir e conversar sentadas em cima de uma grande pedra. Ora já que a vaca se recusava a ouvir nossas risadas e sempre se afastava, resolvemos fazer um rodízio. Éramos três, assim a cada vez que a vaca se distanciava, uma de nós iria buscá-la, puxando-a pela cordinha. Chegou a minha vez. 

Avancei em direção da vaca cheia de coragem, mas quanto mais perto eu chegava, maior ela me parecia. Comecei a tremer. Como pegar a ponta da corda sem esbarrar nela? Tentei, tentei até que percebi que não havia jeito. Eu era muito baixinha e minha cabeça ficava bem debaixo da cabeça dela quando eu tentava pegar a corda. Senti seu bafo desarrumar meu cabelo e sua baba cair no meu pescoço. Então, dei um pulo e peguei a ponta da corda. A vaca deu um passo a frente e, com a pata em cima do meu pé, afundamos na terra fofa. Trinquei meus dentes, apertei os olhos para não gritar.

Resumindo a história, chegamos em casa muito antes do sino da capelinha tocar. Gertrudes levou a vaquinha para o estábulo e eu calcei um par de meias grossas, de inverno, para disfarçar meu pé inchado. Mamãe chegou tarde em casa. Só teve tempo de dar-nos algo para comer e cuidar de nos por na cama. No dia seguinte meu pé ainda doía um pouco, mas o inchaço não estava mais lá. Estava pronta para uma nova aventura.

“ Meu Anjinho, você dormiu? Não faz mal, amanhã eu conto tudo outra vez.”

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A Agnes tem um história de vida cheia de privações e travessias, mas escreve com uma doçura que me cativou. Ela, como eu, gostaria de ter um gravador de pensamentos para agilizar o processo de escrita que, às vezes, nos escorre pelos dedos. Fomos colegas do curso Autoficção: Oficina de Memórias, da Estação das Letras, coordenado pela professora Ana Letícia Leal.

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O OUTONO LÁ FORA
Álvaro Senra
01/05/2020
Terminadas as festas de fim de ano, breve momento de deleite em meio à desmesura do verão, me resta aguardar o outono. Contente em observar os janeiros pela janela da minha sala, entre sofás, livros e filmes, me protejo de sua indelicadeza ou do desarranjo das furiosas chuvas. O verão é um jovem descomedido, sempre me incomodando com a memória de tempos sem ar condicionado, às vezes sem água, longe do mar. Prefiro fingir que o ignoro, imaginando estar no outono, com o ar ligado a 20 graus, dentro de minha casa. 

O inverno, mesmo em nossas terras, é senhor discreto, não sendo dado a farras, mas a compromissos ponderados como um jantar ou uma longa conversa entre amigos. Ótimos argumentos para ficar em casa. 

Mocinha volúvel, a primavera me parece em eterna dúvida entre o compromisso firme proposto pelo adulto inverno e as promessas fogosas do moço verão. Nela, não consigo saber se saio de bermuda e chinelos ao encontro deste, ou me resguardo com o possível retorno daquele. Como a primavera, estou indeciso. Pois bem: é melhor ficar em casa sem fazer nada. 

Mas o outono? Por que a quarentena, justamente no outono? Por que deixar às árvores e aos bem-te-vis o reinado de um Sol moderado e justo, a governar seus súditos da forma mais amena e equitativa possível? Por que somente o rosto dos edifícios e o telhado das casas podem desfrutar do vento manso e constante dos fins de tarde? É correto ceder ao mar o monopólio de refletir o azul brilhante das manhãs? 

Fazer o que, nestas noites maravilhosas? Ficar na sala a gritar Fora! e a xingar os fascistas, quando tenho as calçadas livres para caminhar sem suar ou esconder o rosto do frio, com a Lua imensa a me encarar e multidões e multidões de estrelas me avisando que em seus planetas há água e vida? Muita sacanagem! 

É isso mesmo! Muita sacanagem! O ano pode passar, mas o outono não. E esse está passando, diante dos meus olhos, do lado de fora da janela.




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O Álvaro não abre mão do outono e eu não vivo sem a primavera! Fomos colegas do curso Autoficção: Oficina de Memórias, da Estação das Letras, coordenado pela professora Ana Letícia Leal.

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