quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Futuro do pretérito

Não sei por que ainda me assombro. É a mesma cor exagerada, são os mesmos cachos que se repetem há décadas. Todo mês de julho. Desde quando me sento aqui apreciando o caramanchão do bouganville? Desde que pude dar os meus primeiros passos? Não, não; devo ter precisado de mais tempo para me livrar dos braços dos adultos e ter vontade própria, se bem que vontade própria mesmo não tenho até hoje, e também não sei se alguém é capaz de tê-la. A vontade própria se desmancha na propriedade da vontade dos outros, numa cadeia sem fim de desejos e resignações. Sorte tem o bouganville, exerce o seu direito inalienável e cíclico de ser. Como concorrente, apenas a moita de alamandas que, vez em quando, em seu amarelo pálido, se arvora em rival. Patética! Contra o solferino dos cachos em julho não há ser vegetal, nem animal, a bem dizer nem humano, que lhe faça frente. Se me ouvisse agora, Maíra riria, achando essa minha afirmação um exagero, menos, mãe, menos... 

Riria... Riríamos... 

Ela, cheia de convicções, nunca se admirou com folhas ou flores; sempre preferiu os pelos e as peles, as patas e as asas; tudo que se movesse por vontade própria. E eu? Mãe insegura, a não ser por uma única certeza: por mais desbotada que fosse a minha vida, raios de luz, como um arco-íris, se lançariam ao futuro, colorindo da frente para trás o meu caminho. Uma das pontas seria a minha existência antes da maternidade, e a outra, o destino de Maíra, seus atos, seus passos; até que também ela lançasse adiante a minha extremidade do arco-íris, e assim seria em continuidade, num movimento perfeito e permanente. 

Seria... Seríamos... 

Certezas costumam se esvanecer assim, de súbito, com um telefonema, ou uma mensagem de texto. Ninguém pensaria em cores, em potes de ouro prometidos, numa noite escura e opressora. Eu, sim; pensei em meio ao breu, em meio aos ferros retorcidos e às manchas de sangue. Pensei no meu arco lançado ao futuro, futuro do pretérito, cambaleando no céu sem elegância, e desabando bem longe do pé do bouganville. Daquele momento em diante, faltaria um desenho no céu. Sofri por mim, pela minha finitude, pela possibilidade morta de me perpetuar neste mundo. Eu acabei ali. 

Acabei. Acabamos.


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Texto finalizado na Oficina de Contos, da Estação das Letras, coordenada por João Paulo Vaz.