quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Travessias

      Hora da partida. A voz do encarregado inicia a leitura dos nomes: “Valentino Lazzari, Maria Lazzari, Giovanni Corriolo” - a lista é longa, um a um os personagens vão subindo as escadas que dão acesso ao convés – “Rosa Tomaso, Francesco Ferrara...” O homem dirige-se ao encarregado para corrigi-lo: “Francesco Ignácio Ferrara, senhor”. Em seguida, reúne os dois sacos de aniagem com as tralhas que lhe restaram e segue a fila dos desvalidos. A cada degrau, despe-se das suas origens como se fossem roupas surradas, cava a memória com enxada larga, até que, ao adentrar o navio, só lhe reste um buraco oco, embora não haja muito o que esquecer. Vida difícil em sua terra natal: pobreza, doença, guerra e morte. Logo que se estabelecesse na propriedade prometida, mandaria buscar pai, mãe, irmãos. Foi pela família que se dispusera a enfrentar a incerteza da longa viagem, talvez o ano virasse antes que alcançasse o seu destino. Mas quem o olha ali, encostado à amurada, cabeça e costas eretas, não desconfia da sua ansiedade. 
      Durante toda a travessia, Francesco quase não fala. Concentra-se no que está por vir. Em vez do mar infindo, antevê a terra que receberá a força do seu trabalho. Aceita a ração reduzida de comida e água como condição de penitência e redenção. Ignora as náuseas do balanço das ondas, mas guarda o som daquele ir e vir, um farfalhar esperançoso a lhe dizer que tudo será novo, de novo. Há, contudo, o cheiro da maresia, maresia que não se curva aos devaneios de Francesco: o odor ácido o incomoda nas ventas, faz arder seus olhos e fere a imaginação. Só mesmo o final da viagem é capaz de lhe sossegar os sentidos. Ao desembarcar no porto, construção hospitaleira entre pedras banhadas de sol, sente-se, enfim, no tão ansiado refúgio. Umedece as pontas dos dedos na água salgada e batiza-se: “Francesco Imigrante Ferrara, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. 


      Amanhece. Nídia Martinez toma a filha pela mão, fecha a porta da casa simples, cruza a rua apressada sem nem olhar para trás. Não há muito do que se despedir desde que a violência se instalou por toda a vizinhança. Gangues, traficantes, sequestros, assassinatos: palavras e sentidos dos quais foge, dos quais quer a filha proteger. Levam duas mochilas de lona com o indispensável para cruzar, a pé, centenas de quilômetros até a fronteira de Shangri-lá - o lugar onde serão plenamente felizes, como naquele filme que Nídia assistiu há tempos. 
      Pelo caminho, outras famílias vão se juntando à grande marcha dos desvalidos. Impossível contar adultos, crianças, saber seus nomes, organizá-los. A massa compacta segue, dia após dia em direção ao norte, comida e água racionadas. Nídia não esmorece, quem a olha à frente da caravana, passos firmes, postura altiva, não avalia a sua agonia. O sonho é ferramenta de resistência. Sonhos que compartilha com a filha: castelos são refúgios; pessoas gentis, fadas madrinhas do esperado recomeço. Há, contudo, a realidade da travessia, realidade que não se curva aos devaneios de Nídia: calor inclemente, cansaço, fraqueza, e a indiferença dos que assistem a passagem da multidão. Ela remenda as vísceras, põe o coração em standby, e avança para, logo à frente, descobrir que nem mesmo o final da viagem é capaz de lhe sossegar o corpo. Lá está Shangri-lá, cercada. E não se vê porta, passagem, uma mísera abertura. Nídia leva a filha pela mão, aproxima-se da barreira intransponível, ajoelha-se e, atordoada, pergunta-se: “Nídia Refugiada Martinez, e agora?”

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O último desafio da Oficina Online Escrevendo Crônicas, coordenada por Rubem Penz, foi produzir uma crônica em prosa-poética sobre Refugiados. 
A proposta me fez recordar esta gravura de Lasar Segall que me impactou durante visita ao Museu do artista em São Paulo: “Emigrante debruçado na amurada”, de 1929. Com economia de traços e cores, Segall comunicou muitos sentimentos: desamparo, desespero, solidão, amargura. Essas emoções me inspiraram a escrita e acabaram por se revelar, e se atualizar, em Francesco e Nídia, personagens que, a seu modo e em seu tempo, fazem as inevitáveis travessias.


Para saber mais sobre a obra de Lasar Segall, acesse a exposição on-line Navio de Emigrantes.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

Metodologia

Quando eu escrevo, ou melhor, quando eu decido começar a escrever, já pensei muita coisa antes: escolhi ideias, selecionei palavras, ordenei sentidos. Tudo, tudo bem claro na mente.

O problema é conseguir capturar os pensamentos que, diante do papel ou da tela, fogem apavorados. E toca a revirar a casa a procura deles, os danados são hábeis em inventar novos esconderijos. Tornam-se tão ariscos ao serem descobertos que preciso agarrá-los pelos cabelos e aguentar a gritaria.

E quando, finalmente, concluo a perseguição e sento-me para iniciar a tarefa, estou tão cansada com aquele pique-pega que tenho que deixar a escrita para o dia seguinte.

Escrever seria mais fácil se eu tivesse um gravador de pensamentos – uma traquitana simples, portátil, acionada por um piscar de olhos. Alguém conhece uma startup que possa me ajudar?

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Ufa! Que alívio! Não sou só eu!
Foi o Joaquim Ferreira dos Santos que me salvou do autoflagelo, mas fiquei sabendo que muita gente padece do mesmo mal - um desejo incontrolável de postergar, adiar, retardar, deixar pra amanhã o que se pode fazer hoje, no caso, o que se pode escrever hoje.
Li o depoimento dele e... deu-se a libertação; escrevi sobre o meu processo de escrita. Um trabalho em equipe contra a procrastinação, embora eu ache esta palavra horrorosa. Valeu, Joaquim.

Quando eu escrevo, ou melhor, quando eu me sento para escrever, costumo levantar logo em seguida para fazer qualquer outra coisa. Faço isso algumas vezes. Tomo água, me lembro de um telefonema para dar, até que não resta outro jeito se não encarar o teclado e enfileirar as palavrinhas, uma atrás da outra, e tratando para que elas não pinguem em gotas monótonas como as que pingam agora da torneira do banheiro e, desculpem, preciso me levantar para ir lá fechar a porta. Eu já tive um joguinho no computador que me ajudava bastante a adiar a primeira palavra. Abria a tela, jogava o arqueiro e só depois, quando a mente já esta estava bem esvaziada e não restava outro jeito, começava o trabalho. Escrever é um trabalho pesado.

Joaquim Ferreira dos Santos – depoimento para o Segundo Caderno de O Globo, 1º de agosto de 2003