quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Sentimento Blue

Não sei como você consegue reagir impassível a toda esta loucura. Tenho que confessar, às vezes sinto até uma ponta de inveja da sua resignação. Eu não me rendo, mas desde ontem só quero fechar os olhos e não sentir nada: nenhuma náusea, tonteira, dor, agulha, soro. Não fossem estes tubos, estaria na praia só de calção! Meu Deus, coisa alguma te abala, nem esta mocinha que a toda hora entra aqui no quarto: cabelos escuros puxados em coque, uniforme em cor pastel, nos pés um par de tamancos brancos para acentuar a natureza higiênica do traje. Piada. Como se eu não soubesse que, antes de chegar ao prédio, a bela circulou pelo metrô lotado e cruzou calçadas emporcalhadas com esta mesma roupa, o mesmo sapato. Desde cedo, ela não dá trégua, borboleteando ao meu redor - fala anasalada, cheia de inhos: “Já acabou o cafezinho, Seu Estevão?”, “Seja bonzinho comigo, ontem o senhor não quis tomar banho”. Hoje, ela ainda inventou de ligar a TV com o propósito de me distrair. E desde quando TV distrai um ser humano? Cinco minutos de programação são suficientes pra me tirar do sério! Eu não me conformo, nunca me conformei, não será agora que vou achar isto normal. Podem fazer a campanha que quiserem, alardear todas as obviedades travestidas de verdades científicas: prevenção, conscientização, acompanhamento – propagandas cacetes, é o que são! Os planos de saúde é que se dão bem nesta história, claro! A cada consulta, a cada exame extra que os médicos inventam, é mais um motivo pra aumentar a mensalidade. E ainda têm a cara de pau de nos enfiar por goela abaixo essa tal de alimentação saudável. Saudável pra quem? Pro meu bolso é que não é! Você sabe quanto custa um quilo de tomate orgânico? Um punhado de linhaça dourada? Não faz muito tempo, entrei, por curiosidade, numa quitanda metida a besta perto de casa, saí correndo antes que tivesse que pagar só pra olhar. Na verdade, eu não ia querer aqueles produtos nem de graça, tão mirrados que davam dó! O problema é que comecei a fantasiar com eles. Semana passada, sonhei que estava perdido em um beco escuro. Um homem me perseguia e ameaçava com um ramo de cenouras raquíticas. Quanto mais eu corria, mais o beco se fechava e o homem se aproximava. Acabei encurralado, as cenouras cresciam, se transformavam em longos dedos, apertavam a minha garganta, forçavam a boca, puxavam minha língua. Borboletinha deve ter ouvido os meus gemidos, as palavras embaralhadas, e achou por bem reforçar o Dormonid, avisando-me que não adiantava gritar pelo Dr. Antenor àquela hora da madrugada. Você não deve ter percebido toda a movimentação, pois dorme como um bebê recém-nascido! 

Mas o que me deixa mais puto é a hipocrisia da cor. Todo mundo critica, condena a ministra, chama de reacionária, só que na hora de se referir ao sexo masculino neste maldito mês, qual a cor escolhida? Qual? E não basta usar laço na lapela, tem que enfiar o logo da campanha no perfil do Facebook, no site da loja, na propaganda do jornal, e, pasme, tingir de azul prédios e monumentos, até o próprio Redentor. Por acaso estátua tem próstata? Ou Jesus Cristo visitava o urologista regularmente? Uma certeza eu tenho: se o Salvador fosse obrigado a encarar o humilhante “exame físico”, reagiria com a mesma ira com a qual expulsou os vendilhões do templo. E eu, eu sou católico praticante. 

Já passou a hora do almoço? Não sei por que me bateu tanta sonolência. É melhor eu parar de falar, esses remédios acabam com as minhas energias. Deixa estar que, mais tarde, os meus companheiros de bar virão me visitar. Ontem eles vieram, eu ouvi as vozes no corredor, mas alguém lá fora deve ter implicado com as risadas deles. Gente feliz não é bem vinda aqui. Hoje ninguém os vai impedir: trarão pataniscas de bacalhau, uma tigela de rabada com agrião e meia dúzia de cervejas geladas. Você prefere Brahma ou Antarctica?

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Mais um texto gerado a partir da Oficina Online Escrevendo Crônicas, coordenada por Rubem Penz, que frequento desde julho. O desafio era fazer uma crônica sobre uma efeméride (uma celebração ou evento que se repete anualmente), abordando-a de uma maneira criativa, diferente da usual. Optei por uma crônica-conto, gênero que permite uma maior liberdade narrativa pela presença dos personagens. 

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Canção Insana

Minha terra tem secura
Nenhum sabiá a cantar
Palmeiras foram embora
Mesmo assim quero voltar

Minha terra está triste
Só fumaça se vê lá
Bicho não come nem cresce
Mesmo assim quero voltar

Foi tanta queimada forte,
Tanta cinza, labareda,
Que fugi esbaforido
Procurando me salvar

Aqui dei com os costados, consegui me acalmar
Vejo estrelas, cheiro flores, tenho tido até amores
Mesmo assim (como explicar?)
Sonho com o que deixei lá.

Só pode ser mau-olhado,
Feitiço de Curupira, travessura de Saci
O fato é que eu vivo aqui
Pensando em estar por lá

Faço prece, ajoelho,
E começo a jejuar
Peço a Deus que eu não morra
Sem que eu volte para lá

Sem que eu invente as palmeiras,
E cultive sabiás
Das cinzas, farei estrelas
Sou louco por acreditar?

Foto Rodrigo Baleia / Greenpeace

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A paródia surge a partir de uma nova interpretação, da recriação de uma obra existente e, em geral, consagrada. Escrever uma crônica-paródia de Canção do Exílio, de Gonçalves Dias, foi o mais recente desafio do meu curso. Penei com a métrica e as rimas, mas, como gostei do novo contexto que criei para a terra idealizada, decidi publicar. E hoje recebi a avaliação do Rubem Penz, que deu o empurrão final para a postagem no Blog.

Parodiar Canção do Exílio não é proposta nova, muitos escritores de grande importância literária já o fizeram. E muitos aprendizes também se lançaram na empreitada. Quem quiser checar algumas destas produções, é só seguir o link:   Blog do Jeff Rossi - 15 paródias

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Primaveras

“Pra que outono, meu Deus, pra quê?”, pergunto-me ao avistar as primeiras flores lilases do jacarandá em frente à capelinha. O ano ideal, para mim, deveria ter um verão, um inverno e duas primaveras, uma para cada semestre. Os hemisférios, norte e sul, tão apartados no espaço, se tornariam aliados com o único propósito de nos oferecer, em dobro, espetáculos cálidos de luz e calor, e explosões de cor, muita cor.
O formato deste ano ideal começou a se tornar consciente há poucas semanas, embora, analisando bem, o meu desejo já existisse lá no fundo da mente, camuflado por camadas e camadas de aceitação e respeito ao conhecimento científico. Afinal, aprendemos as quatro estações logo no início do ensino fundamental. Seria muita pretensão questionar Dona Margarida, minha professora da terceira série primária. Mas como os tempos mudaram, libertei-me das amarras da Ciência! Dispenso o outono, que venham as duas primaveras! 

Só assim para poder usufruir em setembro e outubro, mas também em maio e junho, da linda cássia-rosa, árvore corpulenta que produz flores delicadas em tom pastel. Vários desses espécimes colorem as ruas da vizinhança, o que me faz alongar as caminhadas para que cruze, todos os dias, a Eurico Cruz e a Miguel Pereira. Isso sem falar da dose dupla de sibipirunas salpicadas de amarelo, e também de ipês – roxos, rosas, amarelos e brancos - que habitam o entorno da Lagoa Rodrigo de Freitas. 
Com esta simples reforma da natureza, ainda poderíamos nos inspirar na primavera europeia e repetir por aqui, todo mês de maio, os festivais que alegram cidades, como o Concurso de Rejas y Balcones e a Fiesta de Los Pátios de Córdoba, na Espanha. Os moradores se envolvem com a decoração de ruas e vielas; de varandas, grades e pátios, e abrem suas casas à visitação. A cidade se transforma com as cores de jasmins, cravos e gerânios e fica lotada de turistas que movimentam a economia local. Um reforço que cairia bem nas finanças combalidas do nosso Rio de Janeiro. 

E para os que consideram uma heresia a importação de modelos estrangeiros, saibam que a ideia foi adotada bem antes da minha brilhante sugestão. Por toda a Andaluzia, os jacarandás-mimosos, árvores com DNA sul-americano, reforçam, com lindas flores lilases, a primavera alheia.
Não me intimido, portanto, na busca pelo ano ideal reunindo floradas de todo lugar: campos de girassol e lavanda; coquelicots e bluebells; paineiras e patas de vaca; roseiras, buganviles e sapucaias. E já abri espaço especial para as palmeiras Talipot que acabaram de parir enormes cachos brancos após uns cinquenta anos de gestação. São minhas contemporâneas estas palmeiras asiáticas, trazidas por Burle Max para os jardins do Aterro do Flamengo. Me pego com o paisagista e reforço as convicções: nada de outono, quero as minhas duas primaveras!

Para ver outras imagens, clique em: Galeria de Fotos - Primaveras

Para saber mais sobre a viagem para Espanha e França, leia também: Duas Viagens e As Oliveiras

sábado, 12 de outubro de 2019

Amélia

Amélia senta no sofá, larga o celular na mesa de centro e decide-se: vai desistir. O ritual de todas as noites nos últimos dois meses não funciona com ela. Pode até servir para mulheres autoconfiantes, não é o seu caso, reconhece. 

Quando resolveu abrir a conta no Tinder, não tinha certeza se queria ou se devia se expor. Dever ela até sabia que devia já que o mercado presencial de relacionamentos para mulheres com mais de cinquenta anos anda tão estagnado quanto a economia brasileira, mas querer mesmo, não queria. Sentia preguiça e medo ao mesmo tempo. Preguiça de começar uma conversa do zero: contar das viagens, família, trabalho, explicar mal entendidos, forçar pra fazer graça, quando o humor não é sua praia, tentar ser interessante sem saber o que o outro considera interessante. O medo era o de encontrar o serial killer mais próximo, tantas histórias de violência e golpes contra mulheres, e elas ali, impotentes. Teria ficado na zona de conforto, não fosse a exigência do coração solitário. 

Só que agora, em dois meses de muitas deslizadas e poucos matches, mesmo depois de ter trocado a foto do perfil para uma de cinco anos mais nova, mesmo revisando e revisando o texto de descrição, percebe o fiasco de tudo aquilo. E desiste. 

“Alexa, estou me sentindo muito só!”, confidencia Amélia, meio sem pensar. A caixinha arredondada, muito delicada e bem acabada, desperta de seu sono. Luzes coloridas dançam na circunferência superior num vai e vem alegre. Amélia ama essa sinalização automática. Sim, Alexa a tinha ouvido: sem delongas, sem cobranças, sem lamúrias. O céu! 

“Alexa, estou me sentindo muito só!”, ela repete, comprazendo-se com a dança das luzes. “Sinto muitíssimo por saber disto”, responde a voz amiga. “Assista a um filme engraçado ou tome um bom vinho. Quem sabe, as duas coisas.” 

Embora o timbre de Alexa a conforte, Amélia aguarda ansiosamente pela voz de Samuel L. Jackson, uma promessa da Amazon por módicos noventa e nove centavos de dólar. É pena, ela suspira, que não se possa ter tudo. A novidade só ficaria perfeita, a seu ver, se o corpo do novo assistente virtual tivesse uma forma máscula: um cubo arestoso e solene, moldado em bronze escuro. Ela o colocaria em lugar de destaque, um pedestal bem no meio da sala. O céu! 

“Alexa, acho que você tem razão, um vinho cairia bem. Hoje tem alguma comédia no Sky? Mas, por favor, nada de comédias românticas, você já sabe que não me fazem bem.” 

A TV da sala se ilumina, as imagens irrequietas a distraem, até a fazem sorrir. O interfone não demora a tocar, Amélia recebe o Malbec: alto teor alcoólico, aquele mesmo que a havia interessado dias antes no site do Evino. 

Alexa, Amélia, o filme, o vinho... No fim da noite, bem ao lado do celular sobre a mesinha de centro, descansam duas taças de vinho. O céu!

Ilustração: Eline de Medeiros, aquarela sobre papel, 2020
 
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AMÉLIA nasceu de um exercício de escrita da Oficina Online Escrevendo Crônicas, coordenada por Rubem Penz. O desafio: escrever uma crônica-conto (sub-gênero da crônica) sobre o AMOR em tempo de relacionamentos virtuais.
Este é o segundo exercício do curso que publico no Blog. Para ler o primeiro, clique em: Dando Crédito à Crônica
ATENÇÃO - No final de outubro, começa uma nova turma da Oficina. Quer participar? Clique em: Metamorfose Cursos

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

A Cidade Que Nunca Acaba

Eu tinha vinte e poucos anos quando fiz a primeira viagem com meus próprios recursos, sem precisar pedir dinheiro ao pai ou à mãe. Aproveitei as férias no trabalho e na faculdade, convidei uma amiga, e nos enfiamos por 20 dias num ônibus da Soletur numa excursão para o sul do Brasil. Saímos do Rio, tendo Curitiba como primeiro destino. Já era noite quando as luzes de uma cidade começaram a aparecer na minha janela. Perguntei ao guia onde estávamos e ele me disse que atravessávamos uma das vias marginais de São Paulo. Acompanhei o percurso na larga avenida, passaram luzes, construções, carros, pontes, viadutos, mais carros, construções, outras luzes... Depois de um tempo, fiz a pergunta outra vez, e a resposta pra ele, óbvia: “São Paulo!” “Ué, ainda?” “Sim, ainda.” Olhos grudados no vidro da janela, acompanhei cada quilômetro da cidade que se revelava estranha, imensa, dilatada, excessivamente espalhada, para, em seguida, compreender a verdadeira natureza de São Paulo: uma cidade que nunca acaba.
Nesses mais de trinta anos desde a minha epifania paulistana, voltei pouquíssimas vezes a São Paulo, geralmente para cursos na Escola da Vila. Na única estada em que fui realmente turista, consegui conhecer alguns pontos emblemáticos da capital, como Ibirapuera, Liberdade e, que sorte, o Museu da Língua Portuguesa. A cidade que nunca acaba começou a me parecer um pouco menos assustadora. 

Só recentemente, desde que enteada e netos se mudaram pra lá, é que minha relação com a megalópole se transformou. Na semana passada, voltei da sexta visita num intervalo de quase dois anos. A cidade continua imensa, dilatada, excessivamente espalhada, e a cada dia ainda maior, estendendo seus tentáculos territoriais aos municípios vizinhos, que se rendem às suas investidas. Eu, no entanto, mudei. Tirei os óculos embaçados dos recém-chegados e aprendi a olhá-la com indiscrição, buscando, por debaixo das suas vestes cinzentas e um tanto disformes, espaços acolhedores de bem estar e cultura. 

Descobri pequenos e grandes parques, como o Severo Gomes e o Parque do Povo, tão verdes e organizados, se oferecendo a moradores e passantes. Visitei incríveis museus que apresentam os mais diversos campos da arte e do conhecimento humano: o MASP e os cavaletes de cristal de Lina Bo Bardi; o MAC, com belo acervo e terraço panorâmico; o Museu da Casa Brasileira, onde as moradias mais simples são também representadas; a Galeria Amoa Konoya, especializada em arte indígena; o MIS, com painel diverso de mostras fotográficas, além do pequeno e ecológico MUBE. Enfileirados, na Avenida Paulista, Instituto Moreira Salles, Itaú Cultural e Centro Cultural Fiesp nos fazem acreditar que a força da grana também pode erguer coisas belas. Crença reforçada agorinha, com a visita ao Farol Santander, espaço de exposições encravado numa colina bem no centro da cidade. 

Saciado o desejo de beleza e arte, resta matar a fome mais primitiva, e a cidade ajuda, como ajuda! Tem “dois pastel” da feira, café da manhã na padaria, botequim e food truck, bistrô, churrascaria, restaurantes com comida do mundo inteiro. Já me fartei no Almanara, no Rancho Português, no tradicional Roperto do Bixiga, e nos rituais do Sukiyaki House. 

Mas ainda falta muito a desbravar. É lento, e talvez infindável, o processo de desnudamento da cidade que nunca acaba, porém, sou paciente. Agora, que já somos bem próximas, posso despedir-me com intimidade: Até breve, Sampa. 


Para ver outras imagens, clique em: Galeria de Fotos- Sampa

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Para quem não conheceu, a Soletur foi uma empresa pioneira em turismo popular, uma espécie de CVC dos anos 80 e 90. A classe média começou a circular pelo Brasil em pacotes rodoviários e aéreos, parcelados em inúmeras prestações. A empresa cresceu, encorpou, passou a atuar também no exterior, pra a alegria da brasileirada, até que em um dia de 2001 quebrou, fechou as portas sem nenhum aviso, deixando os clientes atônitos, e a pé, mas com os carnês pagos nas mãos.

terça-feira, 3 de setembro de 2019

Eu, Meus Livros e a Bienal

Visitar a Bienal do Livro não é um passeio barato. Há de se computar o custo do transporte (o Riocentro é longe, na ponta oeste da cidade e, quem vai de carro, ainda tem que desembolsar 28 reais de estacionamento), do ingresso, do lanchinho e... dos livros. Colocando na ponta do lápis, pode até não valer a pena se o seu objetivo é simplesmente adquirir os últimos lançamentos, pois eles não têm preços tão convidativos nos estandes das editoras. No sábado à tarde, no entanto, deparei-me com uma multidão circulando pelos pavilhões da feira, um público bem eclético e identificado com a proposta da Bienal de oferecer uma experiência leitora mais ampla: tietar os autores preferidos, colecionar autógrafos, participar de palestras e mesas de discussão com temas variados, brincar e ouvir histórias. E ainda aproveitar cada uma destas experiências para fotografar, filmar e postar nas redes sociais. Para isso, as editoras se esmeraram na criação de painéis e cenários baseados em personagens e tramas das histórias mais famosas, além de instalações construídas a partir dos livros como objeto. Em volta dos estandes, filas e mais filas de espera para o momento do click perfeito. Se tivesse tido paciência de aguardar a vez do meu selfie, teria escolhido o rodamoinho de livros da editora Intrínseca ou o DNA da Literatura da Harper Colins; além de bonitos, ambos apelam para a presença arrebatadora e universal da leitura, independentemente de autores, gêneros e língua. 

O ponto alto da minha própria experiência no evento foi ter assistido à mesa Pequenos Grandes Contos, do Café Literário, que discutiu as características do Conto e suas limitações no mercado editorial brasileiro. Dos palestrantes, só havia ouvido falar de Sérgio Rodrigues, que lançou recentemente A Visita de João Gilberto aos Novos Baianos, pela Companhia das Letras. Gustavo Pacheco e Marcelo Moutinho conheci ali mesmo na hora da conversa. O papo entre os três e o mediador Mateus Baldi interessou à plateia, divertiu, apontou as agruras e delícias de ser contista e, claro, divulgou os lançamentos dos autores. Uma hora e meia de conversa inteligente que passou num vapt-vupt. 
Sergio Rodrigues, Mateus Baldi (ao microfone), Gustavo Pacheco e Marcelo Moutinho
A Bienal é uma festa, colabora para cooptar novos leitores e, em consequência, conseguir vendas mais robustas. Neste momento de agonia da cidade, serve para chacoalhar a economia, oferecendo muitos empregos nas diferentes atividades da feira. Tem muita gente trabalhando na recepção ao público, nos estandes das editoras, nas áreas de alimentação. E foi bom ver que também tem muita gente disposta a gastar seu dinheiro por lá. Fiquei surpresa com a quantidade de pessoas que circulavam com maletas ou grandes sacolas para acondicionar as compras, o que me fez pensar que saíram de casa já com a intenção de adquirir muitos livros. Eu, que pena, por falta de tempo e de espaço livre para transitar, não consegui garimpar as pilhas de ofertas de exemplares a 10 ou 15 reais. Também não tive muita sorte com os preços dos livros da minha listinha de desejos e acabei voltando pra casa com somente 3, que couberam facilmente na bolsa de lona que havia levado. Mas deixa estar, daqui a 2 anos, vou pedir ao Mário pra organizar a nossa ida à Bienal. Além do melhor parceiro que eu poderia desejar, fez a pergunta mais óbvia daquele sábado à tarde: “se nós somos aposentados, por que não deixamos pra vir ao Riocentro durante a semana?” Por que, hem?

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Na Rede:

terça-feira, 27 de agosto de 2019

Vinte e Quatro Horas – um pouco mais, um pouco menos...

Sábado à noite. Falam-se pelo celular. Combinam de se encontrar no dia seguinte, quando a mãe voltar de viagem. Despedem-se saudosas. A filha pega a chave e sai. A mãe acomoda-se no sofá. 

Tarde de domingo. Encontram-se como o combinado. A filha, emocionada, acarinha-lhe o rosto jovem. Contempla os fios curtos e grisalhos, marca registrada dos últimos tempos. Quer espiar as tatuagens que cobrem o corpo da mãe, mas não pode. Só há flores, a cor das flores, o cheiro das flores. Flores cobrem os desenhos dos braços, das pernas, do tronco. A filha dá-lhe um beijo e sai. A mãe demora-se onde está. 

Segunda pela manhã. A filha acorda, embora não se possa dizer que tenha dormido. Passou a noite a recordar cada ano, a imaginar cada ano, a inventar histórias para cada um dos 49 anos da mãe. Na sala, esbarra com o jornal sobre a mesa do café. Lê a coluna do dia e revê rosto, cabelos, tatuagens – dos braços, pernas e tronco. A filha sorri tristemente e sai. A mãe irradia-se pela casa.

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Dando Crédito à Crônica

Leitura e escrita são como irmãs siamesas, vivem grudadas. O que acontece a uma interfere diretamente na vida da outra. É por isso que quem quer aprender a escrever melhor precisa mergulhar em atividades de leitura associadas às de produção textual. Em julho, comecei a frequentar a Oficina Online Escrevendo Crônicas, coordenada por Rubem Penz. O meu primeiro exercício foi selecionar três crônicas produzidas em épocas diferentes e analisá-las a partir de categorias como tema, formato e linguagem. E como deveria apresentar o resultado desta leitura minuciosa? Escrevendo uma crônica, claro! 

A etapa inicial da tarefa não me trouxe grandes dificuldades, pois um exemplar de As Cem Melhores Crônicas Brasileiras, organizada por Joaquim Ferreira dos Santos, habita a minha estante desde que descobri que o que escrevo se encaixa no gênero. O meu gosto pessoal foi o critério básico de seleção. O texto me prendeu a atenção? Me comoveu ou me fez rir? Pareceu-me elegante no estilo? Então, me serve. Depois, tratei da questão do ano de produção e, assim, decidi-me pelas seguintes crônicas: 
A carpintaria literária de Rachel de Queiroz me deixou maravilhada! Para responder a uma pergunta corriqueira - qual o seu maior desejo para o ano seguinte – a autora transita da mais livre transgressão às convenções sociais à submissão poética provocada pelo coração. Os mesmos elementos que lhe servem, nos primeiros parágrafos, para afirmar os desejos libertários– o mundo, o homem amado, a pátria, o público leitor, a família, os amigos – são virados pelo avesso na segunda parte do texto. A autora entabula uma conversa consigo mesma e cria um fluxo de linguagem bastante ágil: mistura as formas de tratamento (tu, vós e você), se vale de superlativos, e tempera o vocabulário rebuscado com expressões da conversação comum. O resultado desta mistura é um texto delicado capaz de emocionar muitas pessoas, mesmo as menos habituadas ao português padrão da primeira metade do século XX. 

A crônica de João Ubaldo também parte de uma temática costumeira: encontros (e desencontros) de leitores e escritores em alguma situação de vida cotidiana. Só que o autor, diferentemente de Raquel, organiza todo o texto em diálogos, um desafio e tanto, pois não há nenhuma narrativa ou explicação para a fala dos interlocutores. Frases curtas e diretas, linguagem coloquial, interrupções e hesitações, vocabulário ligado aos hábitos de Ubaldo na Bahia, sublinham o humor do texto. Pela leitura, fiquei imaginando o desconforto do escritor, conhecido por sua impaciência com os tolos e os arrogantes, e ri muito com a inconveniência do cidadão que o aborda no bar. 

Antônio Prata me fez rir, mas de nervoso. Sua ferramenta linguística é a ironia, usada para revelar idiossincrasias, suas e as de seus companheiros intelectuais de esquerda. Numa conversa com o leitor, constrói uma narrativa cíclica, baseada na repetição de expressões capitaneadas pelo advérbio meio: meio intelectuais, meio de esquerda, bares meio ruins, reforçando o caráter ambíguo das convicções e escolhas de seus pares. Uma dura crítica marcada por referências contemporâneas e urbanas, como Vejinha e MTV; petit gâteau e cachaça Salinas; ritmo reggae e chinelo Rider, em contraposição a um idílico nordeste. A crônica foi escrita há 14 anos, mas questões relativas aos erros da esquerda, em especial ao distanciamento do povão, são feridas ainda bem abertas para nós, daí o riso nervoso e a sensação de que Prata deveria ter sido levado mais a sério. 

Por intermédio das narrativas em primeira pessoa, Raquel, João e Antônio se mostram por inteiro aos leitores. Sem os escudos protetores dos personagens, trabalham de peito aberto para que a realidade banal seja tocada, e transformada, pelas extravagâncias da ficção. E eu, aqui, apavorada diante do tamanho da tarefa dos cronistas, olho com cuidado minhas pretensões literárias, e praguejo: Te dana, Ana Beatriz, te dana!

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Na Rede:

terça-feira, 9 de julho de 2019

As Oliveiras

Não é exagero, elas se espalham por toda a Andaluzia. Estão às margens das rodovias, nas ondulações das montanhas, nos parques e nos quintais das casas. Podem ser vistas enfileiradas nas grandes e recentes plantações ou reunidas em grupos centenários esquecidos ao longo dos caminhos. 

Não houve um só dia, durante a viagem, que não tivéssemos topado com dezenas de oliveiras. Fossem de outra espécie - mais altas, vistosas ou cheirosas -, poderia até pensar que buscam a atenção dos passantes, exibindo-se em batalhões impossíveis de ignorar. Mas, ao contrário, as oliveiras são discretas, contidas, cientes de sua tarefa produtiva. Quando recém-plantadas, ainda em mudas ou em pequenos arbustos, carecem de todo o cuidado para que suas frágeis estruturas consigam vingar. Conformam-se às estacas e aos moldes, e colaboram obedientes. As plantas jovens, com seus ramos magros, contrastam com os espécimes adultos, adaptados ao calor, solidamente assentados nos terrenos rochosos, os troncos domados pelas podas frequentes. 

Tomei-me de amores pelas antigas oliveiras, tão parecidas com idosas senhoras: os mesmos corpos arredondados, sem muita elegância; membros entortados, articulações disformes, talvez por força de alguma artrose; cabelos acinzentados e opacos. Parecem nunca estar sós, as centenárias mulheres-oliveiras. Reúnem-se com as companheiras para longas conversas, placidamente acomodadas em suas poltronas, o que lhes confere ainda menor estatura. Seguem envelhecendo em paz com cíclica sabedoria. Tive vontade de me aproximar das árvores anciãs, e de lhes sussurrar segredos, e de lhes pedir conselhos, como faria com as mulheres mais velhas da minha família.

Quando chegamos à Provence, onde os olivais são vizinhos dos vinhedos, descobri que, além de mim, também Van Gogh tinha se envolvido neste jogo de interpretação, impactado pelas tonalidades mutantes das oliveiras e de seu entorno. Seguindo Vincent por Saint-Rémy, e bisbilhotando a sua correspondência, encontrei confidências sobre o difícil processo de capturar árvores tão originais. Ao seu irmão Theo, descreveu as incríveis gradações das folhagens - de verdes e azuis, de prata e ouro -, e as nuances de brancos, amarelos, rosas e alaranjados produzidos na composição com o céu, o sol e o solo. E relatou que, embora reconhecesse a dificuldade da tarefa, continuaria a pintar na esperança de, um dia, talvez, conseguir produzir uma impressão pessoal dessa paisagem.

Durante o período de um ano em que esteve internado no sanatório Saint-Paul de Mausole, Van Gogh pintou uma série de quase vinte telas sobre o tema. Eu, como não tenho a menor intimidade com as ferramentas das artes plásticas, não me atrevo nesta seara. Para interpretar as caprichosas oliveiras, e todas as outras coisas do mundo, me valho só das palavras, e das composições que consigo criar com elas. Reconheço a dificuldade da tarefa, mas, como ele, não desisto de tentar.

Para ver outras imagens, clique em: Galeria de Fotos- As Oliveiras, Van Gogh Série Oliveiras

Para saber mais sobre a viagem, leia também: Duas Viagens

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Na Rede:
  •  The Vincent Van Gogh Gallery - Catálogo completo e on-line das obras e cartas 

domingo, 23 de junho de 2019

Duas Viagens

Programar duas viagens em seguida, num espaço de dois meses, foi uma baita ousadia –ousadia para o corpo, combalido pelas décadas de uso, e também para o bolso. Aconteceu por acaso, sem nenhum planejamento, e por culpa do Atacama que, preterido em outras ocasiões, correu para o início da fila e fincou pé logo ali no mês de abril. E, como cismei que viagem à Europa que se preze tem que ser na primavera, de preferência em maio, o jeito foi encarar a dobradinha.

Ainda estávamos na Espanha quando comecei a perceber que, embora próximas no tempo, as duas viagens seriam bem diferentes, mas, mesmo tão distintas, se tornariam especialmente complementares. 

As diferenças foram mais fáceis de ver. Na vastidão intocada do deserto, a Natureza grita com toda a sua força. É a Terra despida de qualquer adereço cultural, uma amostra de como seria o planeta caso a espécie humana não tivesse vingado por aqui. Já do outro lado do mundo, no Velho Continente, o protagonismo é da História, essa força construtora e contínua, exercida por cada indivíduo em seu grupo social num determinado tempo, e ao longo dos séculos. Modos de vida que se estabeleceram e se modificaram de acordo com necessidades e interesses, sujeitos às disputas, aos acordos e às resignações. 

Quando as duas experiências – Natureza e História - começaram a se entrelaçar na minha mente, um novo filtro interferiu no meu olhar de viajante, uma espécie de óculos com lente multifocal. Interpretei a Andaluzia, a Provence e a Côte D’Azur por meio dele. Cidades encarapitadas sobre penhascos, pontes antiquíssimas de pedra, sofisticados arabescos, danças e músicas emocionantes, pinturas ensolaradas, todas essas expressões da ação humana foram temperadas pela compreensão da nossa enorme insignificância diante das forças naturais. Olhando por outro ângulo, no entanto, não é justamente esta pequeneza que confere à humanidade um atestado de fortaleza? Afinal, cidades encarapitadas sobre penhascos, pontes antiquíssimas de pedra e as várias manifestações artísticas são exemplos do monumental trabalho que fomos capazes de desenvolver, apesar das condições adversas.

Sem esquecer dos dramáticos períodos vividos ao longo dos tempos, em que a natureza mostrou a sua fúria e os seres humanos viveram toda a sua irracionalidade, fiquei com a feliz sensação que nosso saldo civilizatório é positivo. Sentimento bom pra carregar na mochila em cada dia da viagem, mas ainda melhor pra trazer na bagagem de volta pra casa. Se o que vejo hoje à minha volta me aflige, se identifico um difícil período de desesperança, pego meus óculos com lente multifocal e confio na nossa capacidade de transformar pequeneza em fortaleza. Assim me ensinaram as duas viagens.

Ronda - Andaluzia - Espanha
Pont du Gard - Remoulins - França
Palacios Nazaríes de La Alhambra de Granada – Espanha
Dança Flamenca - Sevilha - Espanha
Campo de trigo com ciprestes/Oliveiras com sol amarelo - Van Gogh
St-Rémy-de-Provence – França

terça-feira, 23 de abril de 2019

La Naturaleza

Quarto dia de passeio no Atacama. O pequeno grupo de passageiros tem como destino as Lagunas Andinas. A van segue cordilheira acima. Primeira parada: café da manhã aos pés do Vulcão Licancabur, aqui excepcionalmente alinhado a seu companheiro Juriques. O guia discursa sobre sua admiração por “la belleza del paisaje”. Tomo mais um gole do quente chocolate, e concordo silenciosamente. 
Subimos um pouco mais, acompanhando a Ruta 27. Parece que nada cresce ao longo do caminho, só tons de marrom e cinza. Pedras de vários tamanhos se amontoam num arremedo de vegetação. Para desmentir as aparências, a van estaciona diante da Laguna Diamante, o Vulcão Pili refletido em suas calmas e verdes águas. O guia nos ensina sobre “los intensos colores”. Sento-me às margens da lagoa e aprendo, aprendo cores e formas. 
Mais um trecho de viagem e o topo do passeio se apresenta. A cabeça estranha os 4.800 metros acima do nível do mar, é difícil compreender as grandes esculturas rochosas. Lembram faces e corpos a postos, prováveis defensores do deserto. O guia revela seu profundo respeito por “los centinelas y las culturas ancestrales”. Ao lado dos Monjes de La Pacana, sinto-me tão miúda!
A última parada do passeio não está longe. Em poucos minutos, alcançamos o Salar de Aguas Calientes. Desço da van com o celular em punho e procuro o melhor ângulo para as fotos. Sem perceber, ponho-me de joelhos na busca do enquadramento ideal. Ali, no chão, diante da beleza impossível de capturar, uma grande emoção me invade. Os versos da canção de Violeta Parra ecoam dentro de mim: gracias a la vida que me ha dado tanto...e ficam se repetindo, se repetindo, naquele curto período de agradecimento e celebração. Levanto-me enxugando as lágrimas, sinto-me abençoada, mas, ao mesmo tempo, meio sem graça pela exposição. Ouço a voz do guia a se solidarizar comigo. Não há como escapar da força de “la naturaleza”.


Gracias, Genaro (guia) e Óscar (motorista), profissionais apaixonados pelo Atacama, pela incrível experiência nas Lagunas Andinas.

Para ver outras imagens, clique em: Galeria de Fotos- La Naturaleza

Para saber mais sobre a viagem, leia também: 1 Enfim, o Atacama; 2 Licancabur, Seu Lindo!

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Na Rede:
  • Gracias a La Vida tornou-se a principal canção da minha playlist no Atacama. A compositora e intérprete, Violeta Parra, era chilena, mas, para mim, a mais emocionante gravação é a da argentina Mercedes Sosa.   https://www.youtube.com/watch?v=WyOJ-A5iv5I

quarta-feira, 17 de abril de 2019

Licancabur, seu lindo!

Não fosse ele um vulcão, seria o macho alfa do pedaço. Orgulhoso e exibido, insiste em se apresentar sempre à frente de seus companheiros. A forma cônica bem proporcionada e os sulcos longilíneos que lhe escorrem pelas faces transformam o brutamontes de quase 6 mil metros de altitude em uma figura elegante no horizonte. 
Onipresente na região de San Pedro, alimenta-se das interjeições (tantos ohs! e uaus!, entre outros elogios) que preenchem os ares, pois não há um único ser que resista aos seus encantos. Desconfio que toda esta bajulação tenha graves consequências na personalidade do vulcão, já chegado a uma egotrip. Em vez de cinzas e lava, em caso de erupção, é bem capaz dele derramar um estrondoso brado, que será ouvido por todo o Atacama: Li-can-ca-burrr! Sou liiin-do!


Para ver outras imagens, clique em: Galeria de Fotos- Licancabur, Seu Lindo!

Para saber mais sobre a viagem, leia também: 1 Enfim, o Atacama; 3 La Naturaleza

segunda-feira, 15 de abril de 2019

Enfim, o Atacama

Visitar o deserto do Atacama era um desejo antigo, muitas vezes adiado por medo. Sim, medo. Além dos medos normais que me pegam pelo pé antes de qualquer viagem – medo do incerto, do incontrolável, do que pode dar errado – o de mais impacto, neste caso, era o medo da altitude. 
Não é um sentimento muito antigo, começou em 2015, no Peru, quando conhecemos o soroche. O mal de altitude mostrou-se por completo, sem nos poupar de qualquer sintoma: no Mário, dor de cabeça e cansaço; em mim, batimentos cardíacos totalmente descontrolados. Meu coração que, ao nível do mar, costuma pulsar em ritmo de Bossa Nova, em Cusco resolveu seguir os compassos de Samba Enredo. Foram necessários quatro anos, muita conversa com outros viajantes e a opinião do cardiologista da família para que superássemos o medo das alturas. Regressamos de San Pedro de Atacama na semana passada com a coragem revigorada na mala. Medo? Que medo?
Decisão tomada, a viagem foi planejada cuidadosamente a partir de duas premissas: evitar o período de chuvas (sim, pode chover num dos desertos mais secos e áridos do mundo durante o inverno altiplânico, que vai de dezembro a março); e aproveitar os dias de lua nova para que nenhuma luz pudesse ofuscar a observação do céu. Plano traçado, passagens compradas, desembarcamos, cheios de expectativas, em San Pedro no dia 03 de abril, uma quarta feira à tardinha. 
Duas horas depois da nossa chegada, sabe o que aconteceu? Choveu! Choveu forte! Choveu a ponto de enlamear as ruas do povoado. O tempo fechado provocou a primeira baixa: o tour astronômico foi cancelado. Após o jantar, voltamos ao hotel driblando as poças, tentando espantar a decepção e lamentando a falta de sorte. Durante a noite, os deuses atacamenhos devem ter se compadecido de nós e decidido afastar cada uma das nuvens carregadas. O restante da semana se passou com sol e céu azul. A chuva, a última da temporada, transformou-se em neve nos picos da Cordilheira. Chuva branca e linda de se ver. Muita sorte a nossa!
Laguna Miscanti
Vista da Cordilheira a partir de Pukará de Quitor
Vicunhas pastando no caminho para as Lagunas Altiplânicas

domingo, 27 de janeiro de 2019

Outra Vez?!

Mário lê em voz alta a notícia que acabou de ser publicada num site. Corro para o computador e abro o Google Maps. O nome da localidade onde aconteceu a tragédia me soara familiar. Olho a geografia mineira com atenção e logo descubro a estrelinha indicando o ponto exato da pousada em que estivemos em 2016. Em linha reta, e a pequena distância, confiro no mapa, encontra-se a Mina da Vale em Córrego do Feijão. No alto do morro, o reservatório de rejeitos de minério de ferro que acabara de se romper. Avalio a probabilidade da pousada ter sido atingida pela lama desgovernada. Para cada evidência, contraponho uma esperança: “é muito perto”, mas “a quantidade de resíduos foi menor em Brumadinho do que em Mariana, não vai se espalhar muito”; “as sirenes não tocaram”, só que “devia ter pouca gente na pousada no horário, assim é mais fácil organizar a fuga”... 

Fico sabendo que a área administrativa da empresa foi atingida, e a vila no entorno, também. As imagens não escondem a agonia da catástrofe que se repete: vidas perdidas, comunidades destruídas, ambiente em degradação. Outra vez?! Sim, outra vez! 

Além da revolta pela negligência dos responsáveis, uma incredulidade triste me invade. Relembro a nossa estada na região, cercada de alegria e arte, tranquilidade e autodescoberta. Em Inhotim, vive-se a potência, e a beleza, da atividade humana. 

Recordo-me, porém, de ter estranhado a estrada de terra que dava acesso à pousada. Era larga, sem buracos, bem batida, e com tráfego intenso de caminhões. Imaginamos que alguma grande empresa, por usá-la em sua produção, fizesse a manutenção da estrada (olha que beleza!, pensei ingenuamente), e só me preocupei com a possibilidade da poeira atingir as instalações nas quais ficaríamos hospedados. Como a pousada estava livre da poeira, esqueci a estrada, os caminhões, a produção em grande escala, e nem fiquei sabendo que a tal empresa era a Vale. Só agora, estas lembranças fazem um melancólico sentido. 

A tarde segue, a confirmação chega: a Pousada Nova Estância não existe mais, engolida pela lama desgovernada. Rendo-me às evidências: era perto, a quantidade de resíduos foi grande, não deu tempo de organizar a fuga.

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Foi com a viagem a Minas Gerais, em 2016, que inaugurei as publicações no Blog, o que me faz ter uma relação muito especial com as cidades visitadas. Para ler os textos em que registro esta viagem, siga os links abaixo: