domingo, 25 de abril de 2021

Choradeira

Eu chorava. E muito. Às vezes, o escarcéu começava ainda em casa quando eu desconfiava das intenções da minha mãe. Devia ser o rosto mais tenso dela, os gestos apressados ou a conversa curta no café da manhã. Lágrimas aos borbotões e pedidos de clemência não a comoviam, e só me restava a estratégia final. Escondia-me atrás da cortina, acreditando que, se eu não visse o perigo, o perigo também não me veria, e iria bafejar o seu hálito desagradável no cangote de outra criança. Demorei pra compreender o fracasso dessa lógica embora, ainda hoje, caia na tentação de fechar bem os olhos e esperar que o coração não sinta as agonias da vida.

Mas também acontecia de eu sair, inocente, para um passeio matinal e só começar a entender a situação lá pela esquina das ruas do Catete e Silveira Martins. Era por ali também que a minha mãe apertava o passo e só parava no portão do posto de saúde, onde poderia contar com a ajuda dos funcionários para domar a filha que começava a espernear. Agulhas eram o meu pavor. Dia de vacina, um verdadeiro tormento. O berreiro, no entanto, nunca teve efeito prático, pois a vacinação era um valor materno inegociável. Pode chorar, mas vai ter que encarar a injeção.

Como os adultos não costumam ser muito generosos com os medos das crianças, o meu desespero virou folclore na família. O caso mais emblemático aconteceu na campanha de vacinação contra a meningite, eu já entrando na adolescência. Em vez da mãe, acompanhou-me uma tia e a prima da mesma idade. No caminho, foram me tranquilizando: eu nem veria a agulha, a pistola de ar comprimido faria o serviço, sem dor e com rapidez – pá, pum, outro braço, por favor. Enfrentamos as filas no Maracanãzinho, o vai e vem das pessoas, o calor do dia, até que finalmente tomei, com os olhos secos, a dose que me cabia. A vitória durou pouco. Já na saída do estádio, fui ficando tonta, tonta, e pálida. Minha tia, apavorada que eu desmaiasse bem no meio da rua, fez com que nos sentássemos no meio-fio. Um senhor, sensibilizado com a cena, parou o carro e nos ofereceu carona. Desde então, em conversas ao longo da vida, nós rimos ao lembrar que fomos salvas por um cavaleiro andante, montado em seu garboso fusca verde.

Com o tempo, fui aprendendo a dominar o medo, a tranquilizar o espírito, e as agulhas pararam de me fazer chorar, dando espaço para novos sentimentos: caí de amores pela minha caderneta de vacinação. Nela coleto, orgulhosa, os carimbinhos das injeções contra febre amarela, tétano, hepatite, gripe. Quinta-feira passada, recolhi o meu mais esperado troféu. A fila pequena e bem organizada da Clínica de Família Santa Marta quase não me deu tempo para refletir sobre a importância do momento, mas foi só bater os olhos no pequeno cartaz grudado na parede - Viva o SUS, Viva a Ciência Brasileira – para ser tomada pela emoção. Segurei as lágrimas enquanto registrava telefone e CPF, e meus olhos chegaram até a sorrir no instante exato da vacinação. Na porta da rua, porém, não consegui fugir da choradeira.