domingo, 2 de agosto de 2020

O Caso do Zé Armênio

Vem, minha filha, senta aqui pertinho de mim, mas antes chama os meninos, que eu quero contar uma história que aconteceu há muito tempo, eu ainda não era nascida, nem a minha mãe. Foi o meu bisavô que ouviu dizer sobre as aventuras de Zé Armênio, e contou pro meu avô, que contou pra mim quando eu era criança. A gente sentava em volta da fogueira e ele dizia: hoje eu vou contar a história do escravo mais tinhoso e retinto da fazenda.
Olha, agora faz de conta que eu acendi o fogo aqui bem no meio da sala, está ficando mais quente, sentiu? Foi assim que o menino nasceu, junto ao crepitar do carvão em uma noite escura, numa beira de rio perto da senzala. E foi o bebê escapulir da barriga da mãe, arregalar os olhos e começar a berrar um choro dos infernos. O pai, aflito com o chororô (pois se o sinhô acordasse...), banhou o menino nas águas do rio pra ele se acalmar. Dizem que foi a correnteza mansa que operou o milagre e, ao mesmo tempo em que o menino calou, sentiu o gosto pelo livre viver, sem que nenhum ferro o prendesse, sem que nenhuma gente o alcançasse, sem que nenhum tempo o escravizasse. 

Zé Armênio cresceu solto pelas terras da fazenda e ninguém podia com suas diabrites. Mamava nas cabras; subia até o último galho das árvores; usava estilingue pra azucrinar os cavalos; escondia a enxada e a foice dos trabalhadores – era arteiro como o próprio Saci-Pererê, só que completo das pernas. E também tinha a esperteza do Curupira, sumia das vistas do capataz que vivia atordoado atrás dos seus rastros. E nunca, nunquinha, chegou a trabalhar, nem na mais simples tarefa. 

Quando o rapaz fez treze anos, começou a se sentir preso naquele território cercado da fazenda. Abriu a porteira e botou o pé no mundo. Os pais não estranharam o sumiço do filho, com certeza ele ouvira o chamado da correnteza que o batizara. Souberam que ele andava pelas terras vizinhas como mascate, vendendo panelas, cortes de tecido e sabão em barra. Mas muita gente dizia que, só pra se divertir, roubava de uns e vendia pra outros, e gastava todo o dinheiro na taberna mais próxima. Foi neste tempo de atrevimento que conheceu as três mocinhas com quem se amasiou, tendo tido casa com cada uma delas, e gerado treze filhos, todos devidamente batizados nas águas dos rios da região. E os filhos, como o pai, seguiram livres por aquelas terras. 

Os anos correram e Zé Armênio, adiantado na idade, começou a se sentir aprisionado naquele corpo de homem velho. Entendeu que, desta vez, de nada ia adiantar abrir a porteira e sair pelo mundo. Resolveu, então, encurtar o mundo, condensar o mundo no seu menor tamanho. Entocou-se numa caverna e lá passou a viver sem que nenhum ferro o prendesse, sem que nenhuma gente o alcançasse, sem que nenhum tempo o escravizasse. 

Homem e caverna se entrelaçaram de tal modo que já não se reconheciam em separado. E embora Zé Armênio benquisesse cada um de seus dias, em qualquer estação do ano, eram as noites que o faziam sentir-se em total harmonia com a sua natureza de bicho livre. Acostumara-se ao escuro: distinguia as sombras, ouvia a presença dos morcegos, farejava o orvalho que adentrava pela boca de pedra. Tateava as paredes e as considerava como seu próprio corpo. Sabia que, em meio às trevas, ninguém seria capaz de invadir a casa. A exceção eram as noites de lua cheia, aquele imenso farol desnudando suas entranhas. 

Foi numa dessas noites que ele pressentiu o perigo: um leve deslocar dos ares, talvez um bater de asas; um cheiro ácido que desconhecia orvalho; um vulto claro-escuro a espreitar o espaço. Zé Armênio não demorou a reconhecer a feroz inimiga de sua liberdade e, apavorado, se encolheu num canto. Um formigamento estranho lhe alcançou os pés, subiu-lhe devagar as pernas, tornou-se quente ao encontrar o ventre, ao espalhar-se às costas. O homem levantou-se num ímpeto, mas se viu sem pés, sem pernas... e sem ar. Uma sufocação tomou-lhe o peito; cambaleou entre as pedras e caiu de borco. Chegou a imaginar os verdes e os amarelos das plantações, vislumbrou os rebanhos brancos e marrons, mas, por fim, as cores foram se perdendo, uma a uma, no sumidouro da inconsciência. Zé Armênio quedou-se inerte, flácido, e deixou-se levar pelo vulto claro-escuro. 

Naquela noite, houve quem jurasse ter passado perto da caverna e visto a morte, tal qual uma pietá macabra, carregando o velho em direção ao rio. E que os dois desapareceram tragados pelo clarão de uma das luas mais lindas já vistas por aquelas bandas. 

O meu avô sempre terminava a história pedindo pra gente olhar em volta, além do clarão da fogueira, pra descobrir os rastros do Zé Armênio, pois, com certeza, o homem conseguira se livrar da morte e andava livre pelas matas, amigo do Saci-Pererê, comparsa do Curupira. 

Então, vem, minha filha, segura na mão dos meninos e vamos ao encalço do escravo mais esperto da fazenda. Faz de conta que a gente achou.

Fogueira - Foto de Clara Pereira 

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Exercício de escrita do curso Texto Puxa Texto
da Estação das Letras, coordenado pelo professor Juva Batella.