segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Dente Ruim

Era um dente ruim, abalado pelo tempo de uso. A cirurgia foi rápida: anestesia, corta, torce, extrai, costura. Vinte minutinhos e pronto. Dor nenhuma.

Pedi pra ver meu dente ruim. Olhei-o curiosa: raiz alongada, base em bloco com reentrâncias. Estranha parte de mim, assim fora do contexto original! Veio pra casa na bolsa, não pude aceitar seu destino cruel. Eu, no lixo!! Não!

Desde então, coloquei-o em destaque na escrivaninha, ao lado do computador. Encontro-o diariamente para um ritual de reconhecimento. Pego-o com cuidado, analiso as formas, as cores em seus claros e escuros, as marcas do boticão... Às vezes, me pergunto por que não o deixo ir. Concluo que não estou preparada, que gosto do dente ruim ali ao meu lado. Que mal pode haver? E o recoloco no lugar, de modo que possa vê-lo, e ele a mim. Apego sincero.

Joy também tinha um dente ruim, abalado pela falta de tratamento. A cirurgia foi ali mesmo, no Quarto. Na verdade, o dente foi se soltando... E a mão de Joy deu o golpe final. Sem anestesia, sem costura. Com alguma dor.

Jack pediu pra ver o dente ruim. Olhou-o curioso. Estranha parte da mãe, assim fora do contexto original. Guardou-o dentro da sua boca pequena, boca de cinco anos de idade.

Conheci Joy e Jack poucas semanas depois do caso com o meu dente.  No filme O Quarto de Jack, os personagens sobrevivem a anos de isolamento em minúsculo cativeiro. Um forte vínculo afetivo os livra da loucura e da morte. O poder simbólico do dente ruim reforça esta união. Os dois, sempre em dois.

Para Jack, no Quarto está tudo que existe: a cama, o armário, o tapete, os livros, a TV, o bolo de aniversário. O que não está lá, concretamente, habita a sua imaginação. Mas, dentro daquele ambiente precário, há o Mundo. Um rico mundo traduzido e construído por Joy, com o que ela considera essencial: literatura, arte, movimento, linguagem, organização.

Ali sentada no escuro, fiquei me perguntando sobre as forças que encorajam Joy no cativeiro. Além do amor pelo filho, base de toda a narrativa, vislumbrei, num momento de risada, a completa explicação. Dentro da boca de Joy também havia um dente intruso, suplementar, simbólico... Um dente ruim, daqueles que despertam apego sincero.


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Já tinha me planejado para ir ao Fórum de Psicanálise e Cinema da UNIRIO por diversas vezes, mas sempre acontecia um imprevisto. Finalmente, na última sexta-feira de agosto consegui assistir ao filme programado (O Quarto de Jack) e participar do debate com psicanalistas e professores da instituição. A partir desta experiência, o caso do meu dente ruim, ressignificado, acabou virando texto para o Blog.
http://www.unirio.br/news/forum-de-psicanalise-e-cinema-inicia-atividades-do-segundo-semestre