terça-feira, 25 de dezembro de 2018

A Vida Privada das Árvores

Eram vizinhas há anos, mas mantinham-se distantes, ensimesmadas. Preocupavam-se em gerar seus frutos, envolviam-se em seus cíclicos cotidianos. 

Cássia, de corpo esguio e alma temperamental, tinha as suas manias: vestir-se sempre de amarelo, manter os galhos bem limpos e só se interessar por espécies cujas flores, pela cor ou formato, a fizessem lembrar-se de si mesma, motivo pela qual a amendoeira da calçada oposta nunca tenha merecido muita atenção de sua parte. 

Amendoeira, por sua vez, já tinha percebido certo incômodo vindo do outro lado da rua: sons lamentosos, muxoxos entre folhas, mas agia com discrição, fiel à sua índole silenciosa. 

No dia em que, finalmente, se olharam, Cássia perdera a compostura. Não suportava mais a dubiedade que a assaltava na origem, uma cisão que afetava a sua identidade. Sabia que muitas árvores viviam calmas com seus múltiplos nomes, sentindo-se até orgulhosas por serem tantas, mesmo sendo uma só. Isso não a consolava, sofria com a constante dúvida e o enganoso conhecimento dos passantes: É uma Acácia? Com certeza é uma Chuva Dourada! Ouvi dizer que é uma Acácia-Imperial!

É Cássia!, respondia ela, irritada, mas já quase sem ânimo pelos sucessivos mal entendidos, pois contestação de árvore não serve à percepção humana, muito menos sensibilidades de árvore. 

Naquele dia em que finalmente se olharam, Cassia reagira a mais um equívoco nominal com coléricos berros. Amendoeira não pôde disfarçar: ouvira todos os gritos, impropérios, desatinos. Achou por bem interferir. Ciente do temperamento volúvel e bisbilhoteiro dos humanos das redondezas, agitou um pouco os galhos, como se uma rajada de vento a tivesse atingido, e despejou as folhas avermelhadas do outono sobre a rua, sobre a calçada. A chuva inesperada atraiu as atenções, e o fascínio deslocou-se da discussão sobre o nome da árvore com luminosos cachos amarelos para a belezura do chão colorido. Os mais práticos, contudo, preocupados com os próximos temporais e o entupimento dos bueiros, trataram de seguir o seu caminho. O fato é que Cássia, liberada da tensão do conflito, foi recuperando a serenidade. E agradecida pela artimanha de Amendoeira, resolveu dedicar-lhe, excepcionalmente, algumas horas de convivência diária. 

No início, falavam sobre amenidades – o sol forte, a falta de sol; a chuva que ontem caiu, a falta de chuva; os pássaros mais frequentes, os que raramente aparecem. Aos poucos, passaram a temas mais vegetais: de inflorescências, frutos e sementes a lagartas, fungos e outras pragas. Concluíram que, não fosse o auxílio da mata no cocuruto do morro ao final do quarteirão, estariam exaustas pelo trabalho de fotossíntese. 

Com a amizade crescente, as duas foram se sentindo mais livres para confidências. Cássia revelou seu total desprezo por pessoas que prendem xaxins de orquídeas semimortas em troncos de árvores sadias. É um total desatino distribuir por aí estas flores estrangeiras, com suas escandalosas cores, revoltava-se ela. Amendoeira desconfiou que a inveja ou o ciúme motivassem a antipatia de Cássia, mas preferiu não se aprofundar em sentimentos tão íntimos. 

Em vez disso, contou-lhe sobre seu especial afeto pelos porteiros – personagens que, como ela, vivem presos aos seus espremidos territórios, impactados pelos fragmentos de vida que lhes passam em frente. Pena serem tão baixos, ocupando postos ao nível do chão, lamentava-se Amendoeira, que aprendera a tirar proveito de sua natureza corpulenta. Ela confessou à amiga que lança os longos e esparramados galhos para o alto dos prédios, e os faz aproximarem-se, convenientemente, das janelas, transformadas em múltiplas telas de TV. E que assiste, atenta, às cenas privadas de amor, às sequências de trabalho e ócio, aos momentos de desencontro e reconciliação, criando com cada morador um forte laço de proximidade. E quando Cássia a interrompeu para queixar-se por só conseguir alcançar grades e cortinas cerradas, Amendoeira intuiu sua verdadeira vocação. Desde então, reúnem-se no silêncio das madrugadas, depois dos garçons fecharem as portas dos bares e os moradores de rua aquietarem-se em seus leitos improvisados. E Amendoeira, convertida em Sherazade, narra seus contos de todas as noites, incluindo suspenses e dores, mesclando seres de carne e osso a novos e fantásticos personagens. 

Cássia, inebriada com os arroubos ficcionais da amiga, mantém-se atenta até que os primeiros raios de sol venham pôr fim à contação. Suas noites mais felizes, porém, são aquelas em que Amendoeira tece histórias sobre a mulher estranha e solitária do sexto andar que, de tanto gastar seus dias em leituras, transformou-se numa criatura muito pálida, pele ressecada e rugosa como papel, olhos aumentados e vermelhos, de cuja boca brotam parágrafos dos textos preferidos. Cássia a batizou de Blanca, em parte por sua aparência física, que embora nunca tenha visto, consegue imaginar com perfeição, mas principalmente pela presença constante, nos monólogos da moça, de uma certa Blanca Trueba. 

Para o deleite de Cássia, Amendoeira põe-se a repetir as falas de Blanca que, dependendo do humor e das mais recentes leituras, descrevem a secura da infância do menino Graciliano, explicam cada uma das instáveis conquistas de Eurídice Gusmão, ou narram os desatinos do ancião que, enfermo e próximo à morte, desata a relembrar o passado.

Mas, quando o tema da moça pálida é a vida privada das árvores: um álamo e um baobá que conversam sobre fotossíntese, esquilos e sobre as vantagens de pertencerem ao reino vegetal, Amendoeira sente-se livre para também fantasiar, e inventa situações como aquela do flamboyant e do coqueiro que, plantados à beira da Lagoa, vivem inconformados com a disposição dos humanos para o exercício físico. O conto predileto de Cássia, no entanto, tem como protagonistas uma amendoeira-da-praia e uma cássia-imperial, vivendo há anos em lados opostos de uma mesma esquina, numa rua tranquila da cidade do Rio de Janeiro.
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Conto escrito a partir da leitura e da resenha do romance de Alejandro Zambra, a Vida Privada das Árvores.
Para ler a resenha, clique em: Um dia um caminhão atropelou a paixão
Fotos - Mario Oliveira