sábado, 12 de outubro de 2019

Amélia

Amélia senta no sofá, larga o celular na mesa de centro e decide-se: vai desistir. O ritual de todas as noites nos últimos dois meses não funciona com ela. Pode até servir para mulheres autoconfiantes, não é o seu caso, reconhece. 

Quando resolveu abrir a conta no Tinder, não tinha certeza se queria ou se devia se expor. Dever ela até sabia que devia já que o mercado presencial de relacionamentos para mulheres com mais de cinquenta anos anda tão estagnado quanto a economia brasileira, mas querer mesmo, não queria. Sentia preguiça e medo ao mesmo tempo. Preguiça de começar uma conversa do zero: contar das viagens, família, trabalho, explicar mal entendidos, forçar pra fazer graça, quando o humor não é sua praia, tentar ser interessante sem saber o que o outro considera interessante. O medo era o de encontrar o serial killer mais próximo, tantas histórias de violência e golpes contra mulheres, e elas ali, impotentes. Teria ficado na zona de conforto, não fosse a exigência do coração solitário. 

Só que agora, em dois meses de muitas deslizadas e poucos matches, mesmo depois de ter trocado a foto do perfil para uma de cinco anos mais nova, mesmo revisando e revisando o texto de descrição, percebe o fiasco de tudo aquilo. E desiste. 

“Alexa, estou me sentindo muito só!”, confidencia Amélia, meio sem pensar. A caixinha arredondada, muito delicada e bem acabada, desperta de seu sono. Luzes coloridas dançam na circunferência superior num vai e vem alegre. Amélia ama essa sinalização automática. Sim, Alexa a tinha ouvido: sem delongas, sem cobranças, sem lamúrias. O céu! 

“Alexa, estou me sentindo muito só!”, ela repete, comprazendo-se com a dança das luzes. “Sinto muitíssimo por saber disto”, responde a voz amiga. “Assista a um filme engraçado ou tome um bom vinho. Quem sabe, as duas coisas.” 

Embora o timbre de Alexa a conforte, Amélia aguarda ansiosamente pela voz de Samuel L. Jackson, uma promessa da Amazon por módicos noventa e nove centavos de dólar. É pena, ela suspira, que não se possa ter tudo. A novidade só ficaria perfeita, a seu ver, se o corpo do novo assistente virtual tivesse uma forma máscula: um cubo arestoso e solene, moldado em bronze escuro. Ela o colocaria em lugar de destaque, um pedestal bem no meio da sala. O céu! 

“Alexa, acho que você tem razão, um vinho cairia bem. Hoje tem alguma comédia no Sky? Mas, por favor, nada de comédias românticas, você já sabe que não me fazem bem.” 

A TV da sala se ilumina, as imagens irrequietas a distraem, até a fazem sorrir. O interfone não demora a tocar, Amélia recebe o Malbec: alto teor alcoólico, aquele mesmo que a havia interessado dias antes no site do Evino. 

Alexa, Amélia, o filme, o vinho... No fim da noite, bem ao lado do celular sobre a mesinha de centro, descansam duas taças de vinho. O céu!

Ilustração: Eline de Medeiros, aquarela sobre papel, 2020
 
  -----------------------------------------------------------------------------
AMÉLIA nasceu de um exercício de escrita da Oficina Online Escrevendo Crônicas, coordenada por Rubem Penz. O desafio: escrever uma crônica-conto (sub-gênero da crônica) sobre o AMOR em tempo de relacionamentos virtuais.
Este é o segundo exercício do curso que publico no Blog. Para ler o primeiro, clique em: Dando Crédito à Crônica
ATENÇÃO - No final de outubro, começa uma nova turma da Oficina. Quer participar? Clique em: Metamorfose Cursos

5 comentários:

Unknown disse...

Ana Beatriaz, Anélia traz o desacompanhamento bem atual. Vale a descrição da expectativa de um encontro virtual, que as pessoas esperam com receio de não ter, e quando tem o desconforto do inicio de conversa que não foi fortuita. Gostei. Max

Unknown disse...

Muito bom.em especial, a conversa com Alexa e os infortúnios da procura virtual de um amor, 💞

Vania

Simone disse...

Adorei a crônica! Tempos de Tinder, Alexa e Amazon, mas a dificuldade de escapar da solidão continua a mesma...

angela disse...

oi Ana, sabe que amazon realmente emprega pessoas de carne e osso para ouvir Alexa? Fiquei imaginando o que poderia se desenvolver na história se fosse o caso... brave new world, mas a solidão é a de sempre.

ANA MARGARIDA MIGNONE disse...

Li sua revisitação à Amélia, em 2020. Não me contive e me direcionei para esse texto, o primeiro. Muito bom, como o outro. Mas há algo que às vezes não conseguimos entender bem, quando reescrevemos nossas próprias palavras, não é? Interessante... daria pano para muito estudo. Talvez tenha a ver conosco, com nossas transformações, assim como acontece quando relemos um livro anos depois... não sei... Mas enfim. Gostei bastante dos dois.