sábado, 11 de abril de 2020

Enclausurado

À moda de Ian McEwan, 
em homenagem à genialidade do escritor

Estamos no mês de junho, eu sei. E não é porque minha mãe costuma comentar o calendário com o meu pai, naquela contagem regressiva típica das grávidas, mas pela alteração do indicador de velocidade de subida – o tempo que levamos, eu e ela, para galgar as escadas do térreo ao quarto andar e entrar no nosso apartamento da Rua Tonelero. Hoje, o percurso escada acima alcançou um índice menor em relação à semana passada. Eu percebi a mudança pelo balançar lento dos líquidos que me envolvem, pelas paradas mais frequentes, e por tê-la ouvido resmungar com a vizinha que eu, esse fardo extra que é obrigada a carregar dentro dela, ando engordando demais ultimamente.

Pudera, cansada dos comentários maldosos sobre ter mantido o peso nos primeiros meses, o que indicaria um desleixo comigo, minha mãe decidiu providenciar o certificado de boa reprodutora abandonando o shape alongado e assumindo a silhueta de fêmea prenha que se preza. Eu ainda era um minúsculo embrião, com poucas semanas de vida, mas recordo-me aterrorizado dos fortes espasmos que me sacudiam, das convulsões abruptas e imprevisíveis. E de como, a cada evento deste tipo, eu acompanhava o movimento em disparada dos passos maternos e ouvia uns grunhidos estranhos. Os sons de líquidos se derramando sobre líquidos me acalmavam, pois antecipavam o alívio da revolução interna. Com o tempo aprendi a confiar na minha avó, em seus vaticínios de que os enjoos e vômitos tinham data certa pra terminar, dali a um ou dois meses, o que de fato aconteceu. Pelas conversas que testemunhei, a elegância do corpo de minha mãe, açoitado pelos incômodos digestivos, só agradava ao meu pai, um pouco enciumado pela concorrência comigo. Recuperada, ela decidiu que se lançaria na busca dos quilos socialmente aceitáveis na sua condição.

O problema é que a comilança trouxe outras consequências, além da subida lentíssima dos quatro lances de escadas. O barrigão de minha mãe passou a disputar espaço com o meu pai e o meu avô no pequeno apê de Copacabana – sala, quarto, banheiro e cozinha –, surrupiando o conforto de ambos. O velho senhor, que havia abrigado a contragosto os recém-casados de poucas posses, viu-se exasperado. Num espaço antes ocupado por um só ser vivente, agora existiam quatro, sendo que ele me considerava um feto mimado e sem limites. Gerador de uma prole numerosa, não via nenhum sentido nos paparicos de minha mãe, marinheira de primeira viagem. A vingança de meu avô atingiu em cheio o cerne da questão: interrompeu o fluxo livre de mercadorias que recebia dos clientes como agradecimento pelos seus préstimos profissionais. Peças de bacalhau, caixas de bombons, latas de doces cristalizados, entre outras delícias, passaram a ser malocadas no guarda-roupas do velho e não mais socializadas com a família. A iniciativa, frustrada, ainda causou um grande mal estar na convivência dos três. Eu adotei a sábia medida do distanciamento, não sou de tomar partido.

Foi mais ou menos nesta época que comecei a perceber os comentários da minha mãe sobre a necessidade de nos mudarmos, sobre o seu desejo de ter mais espaço e liberdade numa casa que pudesse administrar do seu jeito. Tinhosa que só, passou os últimos meses nesta catequese. Aguardava o final do jantar e, logo que meu avô se distraía com o noticiário no rádio, começava a pregação. Nem sempre eu conseguia ouvir bem suas palavras pelo tilintar da louça sendo lavada ou pelos sons da programação, mas podia sentir a circulação volumosa do seu sangue me envolvendo na medida em que se empolgava com o discurso. Tenho a impressão que meu pai já concordou, pois ontem pude capturar fragmentos da conversa: “tem elevador”, “bairro do Flamengo”, “o quarto do bebê”... 

Confesso que concordo com minha mãe, entendo as dificuldades dos cômodos acanhados e da falta de liberdade para ir e vir. Sinto que a minha habitação, um conjugado sem divisórias que até já me pareceu amplo e confortável, está sofrendo uma reforma às avessas: paredes tornam-se mais espessas, portas, mais estreitas, surgem cantos desnecessários e inacessíveis. Ando esbarrando em mim mesmo, sinto-me enclausurado. Paciência, digo-me num mantra de final de jornada. Paciência, pois, afinal, estamos em junho. E em mais um mês estarei livre!

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Texto produzido para o curso Autoficção: Oficina de Memórias, da Estação das Letras, coordenado pela professora Ana Letícia Leal.
  • A narrativa nasceu de uma pesquisa sobre as casas em que morei. Jurava que minha primeira morada no mundo tinha sido em Copacabana, mas estava errada. Meus pais viveram na Rua Tonelero durante o período da minha gestação e, logo que saí da maternidade, fui para um apartamento no Flamengo.
  • Como o gênero é de Autoficção, quer dizer, o escritor tem liberdade total para tornar ficção o que é memória, resolvi embarcar nesta viagem intrauterina. E me vali da estratégia incrível de Ian McEwan, que, no romance Enclausurado, usou o feto como narrador. Mantive o mesmo título do livro de McEwan para enfatizar o recurso de intertextualidade.

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Na Rede:
O podcast da Companhia das Letras tem um episódio dedicado ao livro Enclausurado. Além da conversa sobre o romance, aproveite a leitura de trechos feita pelo Wagner Moura. Imperdível!
Rádio Companhia #85  (link para o Spotify)

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