Vem, minha filha, senta aqui pertinho de mim, mas antes chama os meninos, que eu quero contar uma história que aconteceu há muito tempo, eu ainda não era nascida, nem a minha mãe. Foi o meu bisavô que ouviu dizer sobre as aventuras de Zé Armênio, e contou pro meu avô, que contou pra mim quando eu era criança. A gente sentava em volta da fogueira e ele dizia: hoje eu vou contar a história do escravo mais tinhoso e retinto da fazenda.
Olha, agora faz de conta que eu acendi o fogo aqui bem no meio da sala, está ficando mais quente, sentiu? Foi assim que o menino nasceu, junto ao crepitar do carvão em uma noite escura, numa beira de rio perto da senzala. E foi o bebê escapulir da barriga da mãe, arregalar os olhos e começar a berrar um choro dos infernos. O pai, aflito com o chororô (pois se o sinhô acordasse...), banhou o menino nas águas do rio pra ele se acalmar. Dizem que foi a correnteza mansa que operou o milagre e, ao mesmo tempo em que o menino calou, sentiu o gosto pelo livre viver, sem que nenhum ferro o prendesse, sem que nenhuma gente o alcançasse, sem que nenhum tempo o escravizasse.
Zé Armênio cresceu solto pelas terras da fazenda e ninguém podia com suas diabrites. Mamava nas cabras; subia até o último galho das árvores; usava estilingue pra azucrinar os cavalos; escondia a enxada e a foice dos trabalhadores – era arteiro como o próprio Saci-Pererê, só que completo das pernas. E também tinha a esperteza do Curupira, sumia das vistas do capataz que vivia atordoado atrás dos seus rastros. E nunca, nunquinha, chegou a trabalhar, nem na mais simples tarefa.
Quando o rapaz fez treze anos, começou a se sentir preso naquele território cercado da fazenda. Abriu a porteira e botou o pé no mundo. Os pais não estranharam o sumiço do filho, com certeza ele ouvira o chamado da correnteza que o batizara. Souberam que ele andava pelas terras vizinhas como mascate, vendendo panelas, cortes de tecido e sabão em barra. Mas muita gente dizia que, só pra se divertir, roubava de uns e vendia pra outros, e gastava todo o dinheiro na taberna mais próxima. Foi neste tempo de atrevimento que conheceu as três mocinhas com quem se amasiou, tendo tido casa com cada uma delas, e gerado treze filhos, todos devidamente batizados nas águas dos rios da região. E os filhos, como o pai, seguiram livres por aquelas terras.
Os anos correram e Zé Armênio, adiantado na idade, começou a se sentir aprisionado naquele corpo de homem velho. Entendeu que, desta vez, de nada ia adiantar abrir a porteira e sair pelo mundo. Resolveu, então, encurtar o mundo, condensar o mundo no seu menor tamanho. Entocou-se numa caverna e lá passou a viver sem que nenhum ferro o prendesse, sem que nenhuma gente o alcançasse, sem que nenhum tempo o escravizasse.
Homem e caverna se entrelaçaram de tal modo que já não se reconheciam em separado. E embora Zé Armênio benquisesse cada um de seus dias, em qualquer estação do ano, eram as noites que o faziam sentir-se em total harmonia com a sua natureza de bicho livre. Acostumara-se ao escuro: distinguia as sombras, ouvia a presença dos morcegos, farejava o orvalho que adentrava pela boca de pedra. Tateava as paredes e as considerava como seu próprio corpo. Sabia que, em meio às trevas, ninguém seria capaz de invadir a casa. A exceção eram as noites de lua cheia, aquele imenso farol desnudando suas entranhas.
Foi numa dessas noites que ele pressentiu o perigo: um leve deslocar dos ares, talvez um bater de asas; um cheiro ácido que desconhecia orvalho; um vulto claro-escuro a espreitar o espaço. Zé Armênio não demorou a reconhecer a feroz inimiga de sua liberdade e, apavorado, se encolheu num canto. Um formigamento estranho lhe alcançou os pés, subiu-lhe devagar as pernas, tornou-se quente ao encontrar o ventre, ao espalhar-se às costas. O homem levantou-se num ímpeto, mas se viu sem pés, sem pernas... e sem ar. Uma sufocação tomou-lhe o peito; cambaleou entre as pedras e caiu de borco. Chegou a imaginar os verdes e os amarelos das plantações, vislumbrou os rebanhos brancos e marrons, mas, por fim, as cores foram se perdendo, uma a uma, no sumidouro da inconsciência. Zé Armênio quedou-se inerte, flácido, e deixou-se levar pelo vulto claro-escuro.
Naquela noite, houve quem jurasse ter passado perto da caverna e visto a morte, tal qual uma pietá macabra, carregando o velho em direção ao rio. E que os dois desapareceram tragados pelo clarão de uma das luas mais lindas já vistas por aquelas bandas.
O meu avô sempre terminava a história pedindo pra gente olhar em volta, além do clarão da fogueira, pra descobrir os rastros do Zé Armênio, pois, com certeza, o homem conseguira se livrar da morte e andava livre pelas matas, amigo do Saci-Pererê, comparsa do Curupira.
Então, vem, minha filha, segura na mão dos meninos e vamos ao encalço do escravo mais esperto da fazenda. Faz de conta que a gente achou.
Fogueira - Foto de Clara Pereira
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Exercício de escrita do curso Texto Puxa Texto,
da Estação das Letras, coordenado pelo professor Juva Batella.
6 comentários:
👏👏👏👏👏👏como sempre muito bom!
Obrigada, querido leitor unknown.
Muito bom!
Obrigada pelo comentário, Stella. Bjs.
Parabéns Bia!! Mais um belo texto. Despertou o interesse e a curiosidade. Muito bom. Beijo grande
Belíssimo! Não preciso dizer que fiquei imaginando S. Peixoto contando essa história, lá na Jataí.
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