segunda-feira, 20 de abril de 2020

Interioranas

Goiabada
Lembro-me do fogo recém-aceso, achas de madeira arrumadas no terreiro atrás da casa. Sobre a lenha, chamas modestas domadas para a função, e um crepitar discreto que me parecia chuva. 

Recordo o tacho arredondado, cobre fundo reluzente, cor borbulhante de goiaba fresca, de goiaba madura. 

Evoco as negras mãos do homem negro e a longa haste de madeira arrematada em colher. Incansável punho, vigoroso punho, a misturar a massa, que ferve. 

Respiro o cheiro doce da mistura quente, perfume único de vivência antiga. Espero, em boca, sabor de cascas e de polpa. 


Bonequinha Preta 
Acorde, minha bonequinha preta. Ande a vestir o camisolão bordado e abre bem os seus pequenos olhos de cristal escuro. Lave as mãozinhas de porcelana, mas com cuidado para que o corpinho de algodão não se molhe. E não corra, minha querida, que já bastam os remendos de fita durex que lhe marcam os membros. 

Vou carregá-la em meus braços para que veja tudo o que preparei pra você: o bolo do barro mais macio que encontrei no ribeirão; a mesa de varetas de bambu coberta pela toalha de renda surrupiada do gavetão da sala; os buquês das alamandas amarelas que florescem livres nas moitas do barranco; e a carrocinha puxada a bode enfeitada com laços coloridos. 

Vamos, suba na carruagem, é o dia do seu batizado, uma cerimônia que a minha mãe me ensinou, e que a ela foi ensinada pela minha avó. Não tenha medo, apoie a sua negra e delicada cabeça no meu colo. E eu derramarei sobre ela a água da chuva que apanhei ontem. Assim, bonequinha preta, eu te batizo minha. Nada existirá na sua vida antes de hoje, e seguiremos juntas até que, no futuro, outra criança a queira tanto quanto eu. E neste dia distante, com o coração apertado, eu ensinarei a ela este ritual antigo.


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Nova produção do curso Autoficção: Oficina de Memórias, da Estação das Letras, coordenado pela professora Ana Letícia Leal.
- O desafio foi fazer um levantamento afetivo, elencar objetos e situações aninhados nas memórias da infância. Depois, escolher dois itens deste inventário e produzir pequenos textos em prosa-poética.

- Usamos como disparador para estas produções o livro Memórias Inventadas, de Manoel de Barros.

2 comentários:

Carmen Avolio disse...

Bia!!! mais uma pérola de beleza, delicadeza, afetividade e ode aos bons e inestimáveis valores. Continue por favor nos emocionando e trazendo a tona lembranças tão ricas em amor. Você está de parabéns!!! Um beijo

Ana Beatriz disse...

Carmen, obrigada pelas palavras bonitas, sinto-me encorajada a prosseguir. Bjs.