Fábio atravessou a rua com pressa, o sinal verde de pedestres piscando e exigindo cuidado. Se não fosse a cliente de última hora, experimentando, e rejeitando, todos os sapatos que ele apresentava, não teria que correr. Deu mais uma conferida no relógio e constatou que chegaria a tempo. Alguns passos no mesmo ritmo e avistaria a entrada. O vigilante o cumprimentou com a cabeça, já o conhecia de outras oportunidades. Embora faltassem alguns minutos para o fechamento dos grandes portões de ferro, ninguém o questionou sobre o motivo da pressa e a intenção da visita.
Seguiu pelo calçamento de pedras e entrou na aleia principal. A visão das construções de mármore e das figuras esculpidas que ladeavam o caminho, o silêncio crescente do ambiente, as árvores frondosas acentuando as sombras do final da tarde, tudo contribuía para recuperar seu bem-estar. Afrouxou a respiração e sorriu com a ironia: bem ali no centro do bairro de Botafogo, entre engarrafamentos de carros e gentes, encontrara o seu oásis, e em torno deste oásis, um deserto de pessoas. O medo é um sentimento tão limitador, concluiu ele, um pouco antes de alcançar o objetivo daquele dia.
Tinha sido bem ali, no final da aleia principal, que, na semana anterior, se detivera a reparar nos detalhes de uma edificação de frente retangular revestida com pedras e sem janelas. Pequenos rasgos na parte superior da fachada e na lateral permitiam a entrada de luz. Além da porta em folha dupla vazada, chamava a atenção a hera verde avançando pelas paredes.
Dirigiu-se à entrada bem a tempo do compromisso marcado, seu recente amigo deveria estar à espera. Logo distinguiu o cavalheiro que se aproximava – chapéu coco, terno escuro bem cortado, luvas e bengala com ponteira de metal. O homem saudou-o, efusivo:
- Ora, ora, senhor Fábio Aguiar! Eu aqui já estava a imaginar que não honrarias a tua palavra e deixar-me-ia a ver navios.
- Não, de maneira alguma. Para mim, trato é trato, Senhor Paulo Barreto. Nosso primeiro encontro me impressionou demais! Até queria me desculpar por minha reação. Devo ter parecido um idiota, gaguejando sem parar.
- Não te preocupes, foi realmente uma situação inusitada, aconteceria com qualquer um. A semana me custou a passar, ansioso que estava para retomarmos a conversação. Tantas dúvidas sobre o que começaste a me contar...
- Senhor Paulo... ou posso lhe chamar de Senhor João?
- O que é um nome para definir um ser humano? Um carimbo insuficiente, nada mais. Só não compreendo como ficaste sabendo do meu gosto pelos pseudônimos.
- Acho que fui indiscreto, mas não consegui me segurar: pesquisei sobre sua obra - as crônicas e reportagens -, seus gostos e desgostos. Não queria acrescentar “ignorante” às minhas características...
- Pois orgulho-me de ser múltiplo, dependendo da situação e da minha curiosidade. Se o assunto de nossa conversa for política, nomeie-me José Antônio; se falarmos sobre Paris e as belezas da belle époque, pode me chamar de Claude; no entanto, serei João se quiseres retomar o diálogo sobre a quantas anda esta cidade que amei e conheci tão profundamente.
- Então, não há dúvida, Senhor João, ou melhor, Senhor João do Rio! E agora que nos conhecemos melhor, seria bom deixar de lado as formalidades. Posso chamá-lo de você? É como os amigos se tratam atualmente...
- Trate-me como quiser, senhor Fábio, só não espere que eu adote comportamento tão coloquial. O que vem de berço marca-nos por toda a vida.
- Combinado! Mas hoje vim lhe fazer um convite especial: que tal andarmos por aí, como você costumava fazer nos áureos tempos? Poderia rever a cidade, em vez de ouvir sobre ela.
- Convite aceito, preciso mesmo mudar de ares. Vejo que fizeste uma pesquisa cuidadosa sobre os meus hábitos, deves ter folheado páginas e páginas da “Gazeta de Notícias”. Ou foi de “O Paiz”?
Fábio não se conteve, a visão de si mesmo dentro de uma biblioteca afogado em exemplares de jornais provocou-lhe uma sonora gargalhada.
- O caro amigo poderia me dizer o motivo da graça? – perguntou, batendo o cabo da bengala na palma da mão.
- Ah, João – falou, tentando controlar-se – hoje em dia todas as publicações do mundo podem ser consultadas da própria casa, usando um computador ou um celular, são equipamentos para ler e escrever, calcular, se comunicar...
- Não me diga, então sou mesmo um sujeito genial! Inventei máquinas assim em uma de minhas crônicas mais famosas. Queria vê-las fora da ficção.
- Olhe, trago aqui um celular no bolso, posso lhe mostrar como funciona, mas vamos deixar a lição para mais tarde. Se não sairmos agora, os portões serão fechados. No seu caso, não haveria problema, mas eu teria que pular as altas grades, e esportes nunca foram o meu forte.
Começaram a caminhar em direção à saída. Fábio quis saber por que tinha sido o escolhido, dentre outros visitantes, para a aparição de João.
- Eu já o observava há tempos. Entre muitos que choram, rezam e sofrem saudades, caminhando em procissão, eu o via passear tranquilamente, usufruindo da paz e da beleza do lugar, deixando-se levar pelos detalhes: flores frescas, flores artificiais, nomes, datas... Lembrei-me de mim mesmo, e do prazer que flanar por aí me proporcionava.
- Meu Deus, agora fiquei emocionado!
- Também não é para tanto. Confesso que o tédio andava a me consumir; se não fosse a tua visita na semana passada, juro que teria me manifestado ao primeiro sacripanta que aparecesse.
- Bem, agora já sei que não sou tão especial assim...
- Pois deixa de choramingos e ouça-me! Como deves estar informado, cheguei aqui aos 39 anos, praticamente um bebê, e lá se vão mais de cem. Inicialmente, vivi numa morada exclusiva, como desejava a minha querida mãezinha, mas atordoou-me o silêncio, a falta de companhia. Busquei abrigo junto aos meus colegas das Letras, naquela construção em que nos encontramos.
- Por que, então, se sentiu entediado se estava cercado de acadêmicos? – perguntou, enquanto guiava João pelo braço para que não interrompessem a jornada.
- Esperava um pouco de animação, de modernidade, mas que nada... Estes senhores, à medida que acordam do sono original e percebem que o título de imortal é uma grande balela, contentam-se em reunir-se num eterno falatório. Estou farto destas ideias bolorentas, do chá das cinco, do mofo e das infiltrações nas paredes.
- Sei como é; trabalho no comércio, e os clientes me deixam louco; há dias em que nem quero sair da cama... – interrompe a fala por um instante, olhando a ponta dos sapatos, e em seguida completa - mas vamos ao que interessa, por onde começaremos o nosso passeio?
João explicou que desejava rever o palacete no qual morara na rua Vieira Souto, não tinha tido tempo de se despedir da casa refinada, do areal que a cercava, da vista do morro do Corcovado. Ipanema, entretanto, mudara, nada de palacete ou areal; entre um prédio ou outro, talvez a visão do Corcovado. Seria um baque para o escritor. Fábio tentou demovê-lo da ideia:
- Ipa-pa-nema?!... Que tal irmos à La-pa? - gaguejou como no primeiro encontro.
- Por que o nervosismo, meu caro amigo? Por acaso desejas me ludibriar?
Antes que tivesse de inventar alguma desculpa, chegaram à saída: o vigilante já a postos ao lado dos grandes portões, chaves nas mãos. Apressaram o passo. Na calçada, João voltou à carga:
- Eu lhe peço, senhor Fábio, que não me poupe de nenhum infortúnio. Estou preparado, sempre estive. Sou, quer dizer, fui repórter, acostumado a circular dos mais pobres recantos aos mais requintados, nada há de me surpreender. Sigamos.
Fabio assentiu, João exigia um mergulho sem retoques no Rio de Janeiro. Enquanto aguardavam o Uber que os levaria à Ipanema, ainda puderam notar um rebuliço por detrás dos portões. Um funcionário chegou na correria, e se benzendo:
- Cruz credo! Valha-me Nossa Senhora! A porta..., a porta está aberta, escancarada! Eu que não volto naquele mausoléu. Nem morto!
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- Texto produzido e revisado no Grupo de Escrita, do curso de Formação de Escritores, coordenado por Bruna Tessuto.
Na Rede:
Crônica de João do Rio citada no texto: O dia de um homem em 1920
Flip 2024 - João do Rio será o autor homenageado
8 comentários:
Já tinha gostado do texto antes, agora mais ainda.
Acompanharei você por aqui.
Sucesso!
Adorei sua visita, Giana. Obrigada pela parceria e comentários.
Parabéns, Ana Beatriz, você escreve muito bem. Gosto muito dos seus textos.
Obrigada, Lucimar. Também gostei de ler os seus textos no nosso grupo. Vamos continuar a compartilhar os nossos trabalhos. Grande beijo pra vc.
Minha Madrinha Literária, esbanjando criatividade e sabedoria, adorei!
Que bom que gostou, afilhada Gilda. Bjs.
Parabéns Bia!!! Muito bom!! Criativo demais. Sucesso sempre.
Aninha, estou encantada com a criatividade deste seu texto! Além de demonstrar o seu bom conhecimento da vida e da obra do Paulo Barreto (ou João do Rio, para os “íntimos”) este é um texto que se lê sorrindo, bem temperado com um saboroso senso de humor. O ritmo em que a história se desenvolve (acelerado no começo, tranquilo diante do mausoléu e quase aflito no final) , a cuidadosa descrição do local em que os dois personagens se encontram, o jeito afetadamente lusitano de se expressar do “imortal” acadêmico… enfim, tudo contribui para uma leitura fluida e prazerosa. Parabéns! (Acho até que, graças ao seu texto, estou começando a gostar da escolha do nome do João do Rio como homenageado da Flip desse ano!)
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