quinta-feira, 27 de junho de 2024

Encontro com João

Fábio atravessou a rua com pressa, o sinal verde de pedestres piscando e exigindo cuidado. Se não fosse a cliente de última hora, experimentando, e rejeitando, todos os sapatos que ele apresentava, não teria que correr. Deu mais uma conferida no relógio e constatou que chegaria a tempo. Alguns passos no mesmo ritmo e avistaria a entrada. O vigilante o cumprimentou com a cabeça, já o conhecia de outras oportunidades. Embora faltassem alguns minutos para o fechamento dos grandes portões de ferro, ninguém o questionou sobre o motivo da pressa e a intenção da visita.

Seguiu pelo calçamento de pedras e entrou na aleia principal. A visão das construções de mármore e das figuras esculpidas que ladeavam o caminho, o silêncio crescente do ambiente, as árvores frondosas acentuando as sombras do final da tarde, tudo contribuía para recuperar seu bem-estar. Afrouxou a respiração e sorriu com a ironia: bem ali no centro do bairro de Botafogo, entre engarrafamentos de carros e gentes, encontrara o seu oásis, e em torno deste oásis, um deserto de pessoas. O medo é um sentimento tão limitador, concluiu ele, um pouco antes de alcançar o objetivo daquele dia.

Tinha sido bem ali, no final da aleia principal, que, na semana anterior, se detivera a reparar nos detalhes de uma edificação de frente retangular revestida com pedras e sem janelas. Pequenos rasgos na parte superior da fachada e na lateral permitiam a entrada de luz. Além da porta em folha dupla vazada, chamava a atenção a hera verde avançando pelas paredes.

Dirigiu-se à entrada bem a tempo do compromisso marcado, seu recente amigo deveria estar à espera. Logo distinguiu o cavalheiro que se aproximava – chapéu coco, terno escuro bem cortado, luvas e bengala com ponteira de metal. O homem saudou-o, efusivo:

- Ora, ora, senhor Fábio Aguiar! Eu aqui já estava a imaginar que não honrarias a tua palavra e deixar-me-ia a ver navios.

- Não, de maneira alguma. Para mim, trato é trato, Senhor Paulo Barreto. Nosso primeiro encontro me impressionou demais! Até queria me desculpar por minha reação. Devo ter parecido um idiota, gaguejando sem parar.

- Não te preocupes, foi realmente uma situação inusitada, aconteceria com qualquer um. A semana me custou a passar, ansioso que estava para retomarmos a conversação. Tantas dúvidas sobre o que começaste a me contar...

- Senhor Paulo... ou posso lhe chamar de Senhor João?

- O que é um nome para definir um ser humano? Um carimbo insuficiente, nada mais. Só não compreendo como ficaste sabendo do meu gosto pelos pseudônimos.

- Acho que fui indiscreto, mas não consegui me segurar: pesquisei sobre sua obra - as crônicas e reportagens -, seus gostos e desgostos. Não queria acrescentar “ignorante” às minhas características...

- Pois orgulho-me de ser múltiplo, dependendo da situação e da minha curiosidade. Se o assunto de nossa conversa for política, nomeie-me José Antônio; se falarmos sobre Paris e as belezas da belle époque, pode me chamar de Claude; no entanto, serei João se quiseres retomar o diálogo sobre a quantas anda esta cidade que amei e conheci tão profundamente.

- Então, não há dúvida, Senhor João, ou melhor, Senhor João do Rio! E agora que nos conhecemos melhor, seria bom deixar de lado as formalidades. Posso chamá-lo de você? É como os amigos se tratam atualmente...

- Trate-me como quiser, senhor Fábio, só não espere que eu adote comportamento tão coloquial. O que vem de berço marca-nos por toda a vida.

- Combinado! Mas hoje vim lhe fazer um convite especial: que tal andarmos por aí, como você costumava fazer nos áureos tempos? Poderia rever a cidade, em vez de ouvir sobre ela.

- Convite aceito, preciso mesmo mudar de ares. Vejo que fizeste uma pesquisa cuidadosa sobre os meus hábitos, deves ter folheado páginas e páginas da “Gazeta de Notícias”. Ou foi de “O Paiz”?

Fábio não se conteve, a visão de si mesmo dentro de uma biblioteca afogado em exemplares de jornais provocou-lhe uma sonora gargalhada.

- O caro amigo poderia me dizer o motivo da graça? – perguntou, batendo o cabo da bengala na palma da mão.

- Ah, João – falou, tentando controlar-se – hoje em dia todas as publicações do mundo podem ser consultadas da própria casa, usando um computador ou um celular, são equipamentos para ler e escrever, calcular, se comunicar...

- Não me diga, então sou mesmo um sujeito genial! Inventei máquinas assim em uma de minhas crônicas mais famosas. Queria vê-las fora da ficção.

- Olhe, trago aqui um celular no bolso, posso lhe mostrar como funciona, mas vamos deixar a lição para mais tarde. Se não sairmos agora, os portões serão fechados. No seu caso, não haveria problema, mas eu teria que pular as altas grades, e esportes nunca foram o meu forte.

Começaram a caminhar em direção à saída. Fábio quis saber por que tinha sido o escolhido, dentre outros visitantes, para a aparição de João.

- Eu já o observava há tempos. Entre muitos que choram, rezam e sofrem saudades, caminhando em procissão, eu o via passear tranquilamente, usufruindo da paz e da beleza do lugar, deixando-se levar pelos detalhes: flores frescas, flores artificiais, nomes, datas... Lembrei-me de mim mesmo, e do prazer que flanar por aí me proporcionava.

- Meu Deus, agora fiquei emocionado!

- Também não é para tanto. Confesso que o tédio andava a me consumir; se não fosse a tua visita na semana passada, juro que teria me manifestado ao primeiro sacripanta que aparecesse.

- Bem, agora já sei que não sou tão especial assim...

- Pois deixa de choramingos e ouça-me! Como deves estar informado, cheguei aqui aos 39 anos, praticamente um bebê, e lá se vão mais de cem. Inicialmente, vivi numa morada exclusiva, como desejava a minha querida mãezinha, mas atordoou-me o silêncio, a falta de companhia. Busquei abrigo junto aos meus colegas das Letras, naquela construção em que nos encontramos.

- Por que, então, se sentiu entediado se estava cercado de acadêmicos? – perguntou, enquanto guiava João pelo braço para que não interrompessem a jornada.

- Esperava um pouco de animação, de modernidade, mas que nada... Estes senhores, à medida que acordam do sono original e percebem que o título de imortal é uma grande balela, contentam-se em reunir-se num eterno falatório. Estou farto destas ideias bolorentas, do chá das cinco, do mofo e das infiltrações nas paredes.

- Sei como é; trabalho no comércio, e os clientes me deixam louco; há dias em que nem quero sair da cama... – interrompe a fala por um instante, olhando a ponta dos sapatos, e em seguida completa - mas vamos ao que interessa, por onde começaremos o nosso passeio?

João explicou que desejava rever o palacete no qual morara na rua Vieira Souto, não tinha tido tempo de se despedir da casa refinada, do areal que a cercava, da vista do morro do Corcovado. Ipanema, entretanto, mudara, nada de palacete ou areal; entre um prédio ou outro, talvez a visão do Corcovado. Seria um baque para o escritor. Fábio tentou demovê-lo da ideia:

- Ipa-pa-nema?!... Que tal irmos à La-pa? - gaguejou como no primeiro encontro.

- Por que o nervosismo, meu caro amigo? Por acaso desejas me ludibriar?

Antes que tivesse de inventar alguma desculpa, chegaram à saída: o vigilante já a postos ao lado dos grandes portões, chaves nas mãos. Apressaram o passo. Na calçada, João voltou à carga:

- Eu lhe peço, senhor Fábio, que não me poupe de nenhum infortúnio. Estou preparado, sempre estive. Sou, quer dizer, fui repórter, acostumado a circular dos mais pobres recantos aos mais requintados, nada há de me surpreender. Sigamos.

Fabio assentiu, João exigia um mergulho sem retoques no Rio de Janeiro. Enquanto aguardavam o Uber que os levaria à Ipanema, ainda puderam notar um rebuliço por detrás dos portões. Um funcionário chegou na correria, e se benzendo:

- Cruz credo! Valha-me Nossa Senhora! A porta..., a porta está aberta, escancarada! Eu que não volto naquele mausoléu. Nem morto!
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  • Texto produzido e revisado no Grupo de Escrita, do curso de Formação de Escritores, coordenado por Bruna Tessuto.
Na Rede:
Crônica de João do Rio citada no texto: O dia de um homem em 1920 

8 comentários:

Giana disse...

Já tinha gostado do texto antes, agora mais ainda.
Acompanharei você por aqui.
Sucesso!

Ana Beatriz disse...

Adorei sua visita, Giana. Obrigada pela parceria e comentários.

Lucimar disse...

Parabéns, Ana Beatriz, você escreve muito bem. Gosto muito dos seus textos.

Ana Beatriz disse...

Obrigada, Lucimar. Também gostei de ler os seus textos no nosso grupo. Vamos continuar a compartilhar os nossos trabalhos. Grande beijo pra vc.

Gilda kley disse...

Minha Madrinha Literária, esbanjando criatividade e sabedoria, adorei!

Ana Beatriz disse...

Que bom que gostou, afilhada Gilda. Bjs.

Carmen Avolio disse...

Parabéns Bia!!! Muito bom!! Criativo demais. Sucesso sempre.

Monipin disse...

Aninha, estou encantada com a criatividade deste seu texto! Além de demonstrar o seu bom conhecimento da vida e da obra do Paulo Barreto (ou João do Rio, para os “íntimos”) este é um texto que se lê sorrindo, bem temperado com um saboroso senso de humor. O ritmo em que a história se desenvolve (acelerado no começo, tranquilo diante do mausoléu e quase aflito no final) , a cuidadosa descrição do local em que os dois personagens se encontram, o jeito afetadamente lusitano de se expressar do “imortal” acadêmico… enfim, tudo contribui para uma leitura fluida e prazerosa. Parabéns! (Acho até que, graças ao seu texto, estou começando a gostar da escolha do nome do João do Rio como homenageado da Flip desse ano!)