terça-feira, 7 de junho de 2016

Carta para Maria

Rio de Janeiro, 7 de junho de 2016.
Cara Maria,

Tive vontade de te escrever depois que li a coluna Carta para X. Fiquei tocada com a delicadeza com que tratou de um tema tão doído, e com a sua coragem pra expor sentimentos íntimos.

Pra começar, queria dizer que, em maio, estive em Inhotim, a galeria de artes e jardim em Minas. Você conhece? Achei lindo! Uma das instalações que mais me emocionou foi Através, do Cildo Meireles. É um labirinto de materiais com poder de interferir no nosso olhar - cortinas plásticas, grades de ferro, tecidos translúcidos, cercas, aramados... - dispostos sobre um chão de cacos de vidro. Dependendo do lugar em que nos coloquemos na grande galeria, conseguimos capturar alguns detalhes do ambiente, e somos incapazes de enxergar outros. É como na vida, os limites pessoais filtram a compreensão do mundo. O bacana é que nosso percurso é dinâmico e quase sempre acontece “algo” que nos ajuda a mudar a posição no “labirinto”. Através de seus olhos, Maria, de sua experiência pessoal, como mulher e escritora, reencontrei X, pude vê-la para além do seu corpo maltratado. 

Há tempos que não escrevo cartas, desde a adolescência, acho. Aos 13 anos, me mudei com a família do Rio para Vitória. Para diminuir a saudade e a tristeza pela separação dos amigos e parentes, vivia nos Correios e, sempre que possível, entrava num ônibus–leito da Itapemirim. Foram anos (e muitas cartas) até ter coragem e idade, principalmente coragem, pra sair de casa e voltar a morar no Rio. Talvez você tenha sido mais destemida pra enfrentar a vida... Imagino que sim. 

A família é o núcleo primeiro (e porto seguro) onde nos tornamos gente e, no nosso caso, gente do gênero feminino. Na minha, sempre vigorou o matriarcado – avó, mãe, tias com “couro forte” pra enfrentar as adversidades, responsáveis por manter a estabilidade de filhos e maridos. Pra completar, meu pai tinha um discurso recorrente: moças têm que se dar o valor! Segui os modelos e vesti a fantasia de supermulher...

Acontece que a realidade, esta rebelde irresistível, acabou por quebrar a minha falsa onipotência. Mas foi bem depois da adolescência, do casamento, da maternidade, de algum tempo de terapia, das experiências profissionais... (Ainda hoje, às vezes, encontro a capinha de heroína guardada no fundo do armário e saio interferindo nisto ou naquilo, sem cerimônia. Minha filha que o diga...) Concordo com você, com o passar do tempo as coisas melhoram. Você já sabe que aos trinta fica quase bom. Vou te contar que, depois dos cinquenta, fica quase ótimo, embora a flacidez nas coxas e braços me chateie um bocado. 

Fiquei pensando, Maria, no que você falou sobre a nossa responsabilidade em construir uma sociedade mais respeitosa e igualitária. Percebi que nunca tive uma militância feminista explícita, e aí me bateu um pouco de culpa... Mas acho que não deixei de contribuir para a causa, como mãe e como educadora. Como mãe, aprendendo junto com a minha filha os mistérios (e delícias) do que é ser mulher. Como educadora, mergulhada no caldeirão social que é a escola, e envolvida num debate para integrar (sem discriminar) os anseios e potencialidades das crianças – meninos e meninas. O exemplo do Bento, e dos cuidados dele com o boneco, reforça a importância desta constante discussão. Nos anos em que trabalhei com educação infantil em escolas da zona sul do Rio, observei que a patrulha mais feroz acabava acontecendo com o comportamento dos garotos. Para algumas famílias, em opiniões geralmente expressas pelos homens, não era aceitável que seus filhos brincassem com bonecas, vestissem fantasias ou usassem maquiagem, mesmo em contextos de faz de conta, mesmo que tivessem de 2 a 5 anos de idade. O discurso da igualdade das mulheres já tem uma ressonância em pelo menos parte da sociedade e, talvez por isso, as meninas possam circular entre carrinhos, bonecos e futebol com (quase) a mesma naturalidade com que se vestem de princesas. Essa é uma percepção contextual e particular, não serve pra explicar os movimentos coletivos, mas entendo-a como um indicador de que nosso esforço deve ser o de garantir a todas as crianças ambientes acolhedores e encorajadores. Tarefa árdua, eu sei.

Antes de terminar, tenho que fazer mais uma revelação: esta carta demorou pra ser escrita bem mais do que eu desejava. Custei pra encontrar o tom das confidências: nem melodrama, nem superficialidade. Escrevi muitas versões, revisei-as, reorganizei parágrafos, revisei novamente. Sou pouco experiente neste ofício, e ainda insegura com as minhas produções. Será que esta insegurança diminui com o exercício da escrita? Com o contato com os leitores? Fiquei curiosa com o seu percurso de escritora. Deve ser difícil manter uma coluna semanal, com prazo pra cumprir, tamanho definido de texto, num jornal como O Globo... Mas também deve dar um prazer enorme... Espero que sim.

Com carinho,
Ana Beatriz

2 comentários:

Unknown disse...

Gostei muito de conhecer alguns aspectos de sua vida com sutileza e humor. Texto muito bem escrito. Eee !

Monipin disse...

É muito bom te ler na primeira pessoa, Ana! Delicadeza e acuidade de percepção são duas de suas qualidades mais preciosas. Continue escrevendo! Beijos!