domingo, 23 de março de 2025

Circo Estelar

    A temporada foi um desastre! Na plateia, meia dúzia de filhos de Deus; no caixa, uns caraminguás que não cobririam nem o deslocamento para aqueles confins de Minas Gerais. Eu reconheci na cara esbranquiçada de Lord Orion a preocupação com os destinos do show, já a tinha visto antes. Aliás, ultimamente ele tem precisado de muita maquiagem para disfarçar a palidez, e doses de conhaque ao encarar as contas. A cartola e a varinha não lhe têm sido úteis.
    
    Embora ninguém esteja animado com a situação, não damos o braço a torcer. A esperança costuma se renovar ao longo de cada viagem, para a próxima cidade, e a seguinte. Partiremos daqui a pouco com destino ao vilarejo de Vale Alegre. O nome, com certeza, há de nos trazer sorte: as cadeiras estarão lotadas, e os nossos bolsos também. “Amém”, parece completar Andrômeda, depois de se benzer com leveza de gestos, e beleza das mãos. Andrô é meu amor platônico, a deusa bailarina que completa o meu interior. Sem ela não vou nem até a esquina! Quem sabe um dia me declaro?

    Eu estou acomodado na carroceria do caminhão maior. Pólux e Castor são os encarregados de dobrar as minhas vestes, de organizar a minha estrutura de modo que sobre espaço para as caixas da companhia: roupas, cenários, equipamentos, utensílios e víveres. Lorde Orion diz que os irmãos acrobatas fazem o serviço com organização e rapidez, mas vez por outra ele cede às reclamações dos dois e preciso conviver com Sirius e sua má vontade para o trabalho. Nunca se viu um engolidor de espadas mais arrogante e preguiçoso. Além de ser um péssimo motorista.

    No caminhão menor, segue o restante da trupe. Na boleia, Lord Orion, Andrômeda e Pégaso - pela baixa estatura, o palhaço não consegue se equilibrar no chacoalhar da carroceria. Atrás, protegidos por uma lona bege, e mal acomodados nos bancos de madeira, viajam Antares e seus sete instrumentos, as barracas do acampamento, e Vega, um jovem fugido de casa que se juntou a nós quando perambulávamos pelo Nordeste.

    A caravana avança, Vale Alegre se aproxima, posso ver da minha posição privilegiada. O letreiro com letras garrafais instalado na frente do caminhão maior e a buzina, insistentemente tocada por Lord Orion, chamam a atenção do povo nas ruas. As pessoas param, acenam. Chegamos à praça central. Me animo pelas condições do lugar, espaço fabuloso, bem no meio do ir e vir da cidadezinha. Todos descem, e a alegria dura pouco. Ouço Andrô comentar que o dono da mercearia em frente não quer baderna ali. “Baderna?! Ôxe! Que cabra abestado”, grita Vega. Confusão formada, nos empurram para um terreno lá no final do comércio, depois das moradias. O lugar é até agradável, eu vejo. Tem uma matinha do lado esquerdo com patas-de-vaca floridas; a área aberta é gramada; do lado direito cruza um riacho, facilitando a vida do acampamento. Mas, e ao fundo? Estico minhas hastes para identificar melhor a parte de trás do terreno. Custo a acreditar no que vejo. Não sou o único a perceber nosso infortúnio. Com passadas curtas, Pégaso chega esbaforido da sua excursão. Dá a notícia aos berros: “Estamos cercados por defuntos!”.

    “De-de-funtos?!”, gagueja Lord Orion, buscando o conhaque na bolsa de viagem. Além da máscara branca, o corpo confirma o baque. Está curvado, mãos apoiadas nos joelhos, a garrafa largada aos seus pés. Andrômeda corre a confortá-lo: “Mortos não se importam com a música alta, nem com gritos da plateia! Vai ser até bom, viu?”. Sirius reage aos argumentos femininos e recruta os colegas para uma expedição de reconhecimento; Pégaso, ressabiado, indica o caminho. Eu fico esquecido, dobrado, imóvel na carroceria, as hastes no máximo da capacidade de observação. Aguardo o retorno da trupe.

    Na volta, a conversa em torno do caminhão me põe a par dos fatos. Sim, há um cemitério nos fundos daquela área; o lugar parece bem cuidado – mato capinado, grades de ferro e portão em perfeito estado. Mas é Pólux que mais se sente incomodado com um fato estranho: as lápides das sepulturas estão simplesmente apagadas, nenhuma marca antiga ou indício de que tenham, um dia, existido. Uma sensação de ameaça vai nos contaminando pouco a pouco. Onde andarão estas almas? Sem um endereço determinado, um nome incrustado na pedra, se sentiriam à vontade para vaguear por aí? Viriam em nossa direção? Ou pior: assustariam o nosso público?

    As perguntas circulam no ar acompanhando a roda de conversa e ninguém se dá conta de uma figura que se aproxima. “Nunca tivemos um circo por aqui”, diz a mulher, entre aborrecida e aflita, ao ler a placa de divulgação. Pelos buracos da minha lona, consigo ver, de costas, uma senhora em carne e osso, não me parece assombração. Antares se aproxima da visitante, leva a flauta em uma das mãos. Apresenta a trupe, suas habilidades fantásticas, fala sobre o espetáculo jamais visto em toda a Terra. Aproveita o momento de conversação para chegar bem perto e investigar-lhe o rosto. Percebe os olhos avermelhados, e brilhantes da senhora. Um tremor percorre o corpo do músico. Ele empunha a flauta e começa a tocar uma melodia aprendida há milhares de anos. O efeito é imediato, não em mim, é claro. Andrômeda e a mulher se movimentam lentamente; braços seguindo o alongado das notas sopradas por Antares. Em seguida, Pégaso, Pólux e Castor fazem corrupios em torno de si, cabeças balançando a cada trinado mais agudo. Vega e Lord Orion dão-se as mãos, rodopiam e cantam largas vogais: aaaaaá, oo oo, oooó. E Sirius encolhe-se como se estivesse em um casulo, oscilando ao sabor de uma brisa mansa. A cena é bonita de ver. Quisera eu poder acompanhá-los neste transe musical.

    Mas é justamente pelo meu estado de consciência que consigo reparar nos vultos atraídos pelo flautista. Saindo da matinha de patas-de-vaca, das margens do riacho, chegam jovens, velhos, meninos e meninas, homens e mulheres, dançando coreografias inventadas. Aos poucos se juntam a Antares e ao corpo de baile original. “Viemos parar em Hamelin?”, me pergunto. Os olhos avermelhados e brilhantes da gente que chega me dizem que não.

    Sinto uma aragem a propagar-se pelo descampado, um bailado ascendendo por trapézios transparentes. O ar ondulante atinge minhas vestes, desdobrando-as uma a uma. Flutuo. E pairo colorido sobre o gramado, acima das cabeças dos dançarinos. Ali, num tempo guiado pela música, seres sem passado se unem aos que não querem ser esquecidos.

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  • Texto produzido e revisado no Grupo de Escrita, do curso de Formação de Escritorescoordenado por Bruna Tessuto. O desafio foi construir uma história a partir de três imagens bem díspares: uma lápide sem inscrições, uma senhora e um mágico. Quando li a proposta, pensei: "Que coisa mais sem noção!" Depois que escolhi o narrador,  a tarefa fez mais sentido. Encarei, e gostei de elaborar esse conto inspirado na fantasia dos espetáculos circenses.

segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Calendário

Um mês, os meses, todos eles

passam aos pulos - pulos de perneta.

E caem, em cacos, confusos


Fevereiro ferve em frevo,

em mim é frio, fraqueza.


Março e maio me amolam:

martírio, mistério, quaresma,

amor materno, amarelo.


Abril adoro,

te amasso, me amanso.

Agosto dá gosto - amargo,

de adeus -, não gosto.


Junho e julho eu sempre junto:

canjica, quentão, pamonha.

Janeiro tento jejum,

é o jeito!


Setembro, se me lembro,

segue-se de novembro.

Noite a noite, em novena

rezo o terço, desolada.

E logo me chega dezembro.

Desanimo. Terminou?


Ainda me resta outubro,

outono, em ouro se espalhando.

Ouço um murmúrio nas folhas...

Que ousado!

É um ouriço enrolado,

confundindo o calendário.

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  • O desafio de escrita do módulo Poesia e Prosa Poética, coordenado por Rafael Figueiredo, foi construir um poema usando uma das figuras de linguagem: aliteração (repetição de sons consonantais) ou assonância (repetição de sons vocálicos). Acabei juntando os dois recursos num só poema. Foi desafiante, e divertido, garimpar as palavras, montar as composições sonoras. A ilustração, gerada pela IA do Canva e editada por mim, segue a mesma atmosfera bem-humorada com que busquei traduzir a proposta.

sábado, 6 de julho de 2024

Carla e Dalva

Já são quase dez da noite quando Carla senta-se em frente ao computador para mais horas de trabalho. A rotina sempre apertada - atividades na agência de publicidade, cuidados na educação dos filhos – e agora os prazeres e pressões com os prêmios e recordes de vendagem, vão empurrando o ofício da escrita para cada vez mais tarde. Não chega a ser um problema para uma workaholic assumida, embora, às vezes, uma pontinha de cansaço, um incômodo nos ombros a façam desejar que, em vez de um rio caudaloso, sua vida seja um lago de águas tranquilas, onde possa soltar o corpo e deixar-se simplesmente boiar.

Abre o arquivo do capítulo mais recente. A narrativa em construção a instiga; para ela escrever é expressar-se em liberdade, é tornar-se amiga, aliada das palavras. Carla interrompe a escrita justamente onde uma palavra lhe escapa. Sabe que é preciso ter paciência com os sentidos, persistir nas possibilidades, até que uma ideia se instale, soberana. Como ela se instalou, há anos, neste escritório no andar térreo de sua casa em Belo Horizonte – espaço de trabalho e criação, só dela, sem que ninguém a incomode. Pelo menos, não até esta noite calorenta de inverno, imensas janelas abertas descortinando o jardim. O som de folhas secas pisadas, uma melodia suave de ninar, a voz afinada de uma mulher, vão ocupando devagar o recinto. Carla fica de pé, estica o pescoço; um vulto aparece por detrás do ipê roxo em flor no canto do terreno. Enquanto a figura se aproxima, pisando a grama recém aparada, Carla dirige-se à janela, tentando reconhecê-la: talvez pela postura esguia, ou pelo pisar decidido. Quem sabe chegando mais perto, possa lhe ver a face em detalhes. Não demora, estão frente a frente:

- Dalva?! É você?

- Sim, sou eu, Carla.

Dalva não espera convite e adentra o escritório.

- Por um momento, duvidei. Seus cabelos grisalhos, um pouco mais lisos... Mas os olhos, os olhos de jaboticaba, molhados e grandes como eu descrevi, me levaram a você.

- Envelheci, continuei meu caminho. Deus voltou para mim, como você anunciou ao colocar o ponto final do romance, mas ainda tenho tantas dúvidas. Eu não me conformo. Eu preciso que você me diga por quê?

- Pergunte, você tem todo direito, uma personagem não há de ter melindres com seu criador.

- Por que você escolheu a mim para tanto sofrimento? Por que me envolveu em uma paixão sem tamanho e me desamparou diante da dor?

- Era o seu destino. Filha de Antônio e Aurora, cercada de amor, e música, só você teria a chance de ressignificar o ciúme, o mal, a violência...

- Destino, não, sina! Queria que você soubesse disto. Olhe, num capítulo, num só capítulo, você me levou do casamento, de um gostar de muitos verbos, a uma dor desumana de perder tudo: meu homem, meu filho, minha fé!

- Tudo lhe foi devolvido, Dalva, embora entenda a sua revolta. Escritores não são confiáveis.

- Ardilosa, é o nome que me vem à cabeça agora para defini-la. Tudo tão encadeado, os fatos arrumadinhos para aquele final. Sabe os desatinos que andam falando sobre mim quando a leitura acaba? Eu preferia que você tivesse me matado.

- Não sei se te consola, também escuto críticas, algumas são tão... tão...

- Tão injustas! Tão cruéis! Será que quem lê não percebe que somos falíveis: você, eu; todas as personagens e seus criadores, todos somos frutos da mesma humanidade.

- Quem vê de fora sempre acha que faria arranjos melhores, mas é de dentro que o não dar conta ocupa tudo - recita Carla - pensei que eu tinha sido clara quando escrevi esta frase.

- Se você tivesse permitido, eu poderia ter ido embora, mas fiquei sentenciada a uma eterna avaliação. E agora, para piorar a minha situação, ainda teve esse prêmio em Portugal. Soube ontem da novidade num clube do livro. Precisei comparecer porque meu nome foi muito pronunciado. Era Dalva isso, Dalva aquilo... Culpa sua, de raiva nem lhe trouxe o tabuleiro com empadas que tinha acabado de assar.

- O que acontece depois da última página não me cabe definir, Dalva. Deixei o caminho aberto para você e Venâncio. Você, ele, seus filhos pertencem agora aos leitores - à imaginação deles, aos desejos e limitações de cada um deles. Por isso, os destinos são, serão indefinidamente múltiplos. Agarre-se às pessoas que se emocionaram, se identificaram com as tramas de vocês, estas são muitas; deixe de lado os autoritários, os conservadores.

- É tão difícil, não sei se consigo...

- Vamos tentando, Dalva, vamos tentando. Mas agora sente-se aqui e me conte as novidades. Você e Venâncio se acertaram? Como está o Vicente? Apegou-se ao pai depois de tanto tempo de separação? E o João, conseguiu compreender por que tem duas mães?
 
E as duas conversam até de manhazinha, esclarecendo os fatos, aparando as arestas, trocando confidências. Carla registra na memória e no coração o rumo daquela prosa: adubo para novas histórias, fermento para outras personagens. Escritores não são mesmo confiáveis.
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  • Texto produzido e revisado no Grupo de Escrita, do curso de Formação de Escritorescoordenado por Bruna Tessuto.

quinta-feira, 27 de junho de 2024

Encontro com João

Fábio atravessou a rua com pressa, o sinal verde de pedestres piscando e exigindo cuidado. Se não fosse a cliente de última hora, experimentando, e rejeitando, todos os sapatos que ele apresentava, não teria que correr. Deu mais uma conferida no relógio e constatou que chegaria a tempo. Alguns passos no mesmo ritmo e avistaria a entrada. O vigilante o cumprimentou com a cabeça, já o conhecia de outras oportunidades. Embora faltassem alguns minutos para o fechamento dos grandes portões de ferro, ninguém o questionou sobre o motivo da pressa e a intenção da visita.

Seguiu pelo calçamento de pedras e entrou na aleia principal. A visão das construções de mármore e das figuras esculpidas que ladeavam o caminho, o silêncio crescente do ambiente, as árvores frondosas acentuando as sombras do final da tarde, tudo contribuía para recuperar seu bem-estar. Afrouxou a respiração e sorriu com a ironia: bem ali no centro do bairro de Botafogo, entre engarrafamentos de carros e gentes, encontrara o seu oásis, e em torno deste oásis, um deserto de pessoas. O medo é um sentimento tão limitador, concluiu ele, um pouco antes de alcançar o objetivo daquele dia.

Tinha sido bem ali, no final da aleia principal, que, na semana anterior, se detivera a reparar nos detalhes de uma edificação de frente retangular revestida com pedras e sem janelas. Pequenos rasgos na parte superior da fachada e na lateral permitiam a entrada de luz. Além da porta em folha dupla vazada, chamava a atenção a hera verde avançando pelas paredes.

Dirigiu-se à entrada bem a tempo do compromisso marcado, seu recente amigo deveria estar à espera. Logo distinguiu o cavalheiro que se aproximava – chapéu coco, terno escuro bem cortado, luvas e bengala com ponteira de metal. O homem saudou-o, efusivo:

- Ora, ora, senhor Fábio Aguiar! Eu aqui já estava a imaginar que não honrarias a tua palavra e deixar-me-ia a ver navios.

- Não, de maneira alguma. Para mim, trato é trato, Senhor Paulo Barreto. Nosso primeiro encontro me impressionou demais! Até queria me desculpar por minha reação. Devo ter parecido um idiota, gaguejando sem parar.

- Não te preocupes, foi realmente uma situação inusitada, aconteceria com qualquer um. A semana me custou a passar, ansioso que estava para retomarmos a conversação. Tantas dúvidas sobre o que começaste a me contar...

- Senhor Paulo... ou posso lhe chamar de Senhor João?

- O que é um nome para definir um ser humano? Um carimbo insuficiente, nada mais. Só não compreendo como ficaste sabendo do meu gosto pelos pseudônimos.

- Acho que fui indiscreto, mas não consegui me segurar: pesquisei sobre sua obra - as crônicas e reportagens -, seus gostos e desgostos. Não queria acrescentar “ignorante” às minhas características...

- Pois orgulho-me de ser múltiplo, dependendo da situação e da minha curiosidade. Se o assunto de nossa conversa for política, nomeie-me José Antônio; se falarmos sobre Paris e as belezas da belle époque, pode me chamar de Claude; no entanto, serei João se quiseres retomar o diálogo sobre a quantas anda esta cidade que amei e conheci tão profundamente.

- Então, não há dúvida, Senhor João, ou melhor, Senhor João do Rio! E agora que nos conhecemos melhor, seria bom deixar de lado as formalidades. Posso chamá-lo de você? É como os amigos se tratam atualmente...

- Trate-me como quiser, senhor Fábio, só não espere que eu adote comportamento tão coloquial. O que vem de berço marca-nos por toda a vida.

- Combinado! Mas hoje vim lhe fazer um convite especial: que tal andarmos por aí, como você costumava fazer nos áureos tempos? Poderia rever a cidade, em vez de ouvir sobre ela.

- Convite aceito, preciso mesmo mudar de ares. Vejo que fizeste uma pesquisa cuidadosa sobre os meus hábitos, deves ter folheado páginas e páginas da “Gazeta de Notícias”. Ou foi de “O Paiz”?

Fábio não se conteve, a visão de si mesmo dentro de uma biblioteca afogado em exemplares de jornais provocou-lhe uma sonora gargalhada.

- O caro amigo poderia me dizer o motivo da graça? – perguntou, batendo o cabo da bengala na palma da mão.

- Ah, João – falou, tentando controlar-se – hoje em dia todas as publicações do mundo podem ser consultadas da própria casa, usando um computador ou um celular, são equipamentos para ler e escrever, calcular, se comunicar...

- Não me diga, então sou mesmo um sujeito genial! Inventei máquinas assim em uma de minhas crônicas mais famosas. Queria vê-las fora da ficção.

- Olhe, trago aqui um celular no bolso, posso lhe mostrar como funciona, mas vamos deixar a lição para mais tarde. Se não sairmos agora, os portões serão fechados. No seu caso, não haveria problema, mas eu teria que pular as altas grades, e esportes nunca foram o meu forte.

Começaram a caminhar em direção à saída. Fábio quis saber por que tinha sido o escolhido, dentre outros visitantes, para a aparição de João.

- Eu já o observava há tempos. Entre muitos que choram, rezam e sofrem saudades, caminhando em procissão, eu o via passear tranquilamente, usufruindo da paz e da beleza do lugar, deixando-se levar pelos detalhes: flores frescas, flores artificiais, nomes, datas... Lembrei-me de mim mesmo, e do prazer que flanar por aí me proporcionava.

- Meu Deus, agora fiquei emocionado!

- Também não é para tanto. Confesso que o tédio andava a me consumir; se não fosse a tua visita na semana passada, juro que teria me manifestado ao primeiro sacripanta que aparecesse.

- Bem, agora já sei que não sou tão especial assim...

- Pois deixa de choramingos e ouça-me! Como deves estar informado, cheguei aqui aos 39 anos, praticamente um bebê, e lá se vão mais de cem. Inicialmente, vivi numa morada exclusiva, como desejava a minha querida mãezinha, mas atordoou-me o silêncio, a falta de companhia. Busquei abrigo junto aos meus colegas das Letras, naquela construção em que nos encontramos.

- Por que, então, se sentiu entediado se estava cercado de acadêmicos? – perguntou, enquanto guiava João pelo braço para que não interrompessem a jornada.

- Esperava um pouco de animação, de modernidade, mas que nada... Estes senhores, à medida que acordam do sono original e percebem que o título de imortal é uma grande balela, contentam-se em reunir-se num eterno falatório. Estou farto destas ideias bolorentas, do chá das cinco, do mofo e das infiltrações nas paredes.

- Sei como é; trabalho no comércio, e os clientes me deixam louco; há dias em que nem quero sair da cama... – interrompe a fala por um instante, olhando a ponta dos sapatos, e em seguida completa - mas vamos ao que interessa, por onde começaremos o nosso passeio?

João explicou que desejava rever o palacete no qual morara na rua Vieira Souto, não tinha tido tempo de se despedir da casa refinada, do areal que a cercava, da vista do morro do Corcovado. Ipanema, entretanto, mudara, nada de palacete ou areal; entre um prédio ou outro, talvez a visão do Corcovado. Seria um baque para o escritor. Fábio tentou demovê-lo da ideia:

- Ipa-pa-nema?!... Que tal irmos à La-pa? - gaguejou como no primeiro encontro.

- Por que o nervosismo, meu caro amigo? Por acaso desejas me ludibriar?

Antes que tivesse de inventar alguma desculpa, chegaram à saída: o vigilante já a postos ao lado dos grandes portões, chaves nas mãos. Apressaram o passo. Na calçada, João voltou à carga:

- Eu lhe peço, senhor Fábio, que não me poupe de nenhum infortúnio. Estou preparado, sempre estive. Sou, quer dizer, fui repórter, acostumado a circular dos mais pobres recantos aos mais requintados, nada há de me surpreender. Sigamos.

Fabio assentiu, João exigia um mergulho sem retoques no Rio de Janeiro. Enquanto aguardavam o Uber que os levaria à Ipanema, ainda puderam notar um rebuliço por detrás dos portões. Um funcionário chegou na correria, e se benzendo:

- Cruz credo! Valha-me Nossa Senhora! A porta..., a porta está aberta, escancarada! Eu que não volto naquele mausoléu. Nem morto!
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  • Texto produzido e revisado no Grupo de Escrita, do curso de Formação de Escritores, coordenado por Bruna Tessuto.
Na Rede:
Crônica de João do Rio citada no texto: O dia de um homem em 1920 

domingo, 17 de março de 2024

A Casa

 

A casa era antiga, e feia. Fachada estreita, portão de ferro com grades em cima. Há tempos não via tinta, cinzas e beges já desbotados.

A casa, assim precária, vivia só. Há tempos não via gente, cômodos desabitados em seu interior.

A casa estava triste. Cansada de asperezas, queria vida em carne e osso. Sabia de sua falta de graça. Numa rua de exuberâncias, quem haveria de lhe lançar os olhos?

A casa teve uma ideia, conhecedora que era da vizinhança – anos de observação privilegiada. E rabiscou-se a cara, com ironia, certa de que a mensagem seria sua aliada. “Não quero visitas”. E destrancou-se toda, a espera.

Não tardou e a casa sentiu o sol. Uma lufada de vento a invadiu quando o portão rangeu na timidez da manhã. E ela toda tremeu ao pressentir certeza nos pés pequenos que pisavam-lhe o chão.

A casa agora pulsa, água e sangue em sintonia. Até que o tempo passe, e a vida clame por outras mensagens.

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Texto produzido a partir de disparador do grupo Escrita Matinal (@escritamatinal)

sexta-feira, 8 de março de 2024

Esquina

Gente se encontra na esquina.

Eu, você, várias Marias,

Hopper, Chico e Djavan,

seu José da padaria,

a nonna da velha cantina


Gente se encontra na esquina.

Chega com os próprios pés, na volta da oficina,

pega o carro, chama um Uber,

ou desce daquele busão,

ronco, freada, buzina.


Gente se encontra na esquina.

Em pé, do lado de fora, na mesa há pouco montada,

papeando no balcão,

olhando tudo de cima, da sacada barulhenta,

gritando pra multidão.


Gente se encontra na esquina.

Ficha redonda no bolso pra logo chamar Carolina

Iphone por perto dos olhos, checando o novo recado.

Vai um ovo colorido? Um churrasquinho de gato?

Um pingado de café, cerveja como rotina


No torto quadrado das ruas,

voejam modos e medos, circulam milhares de sonhos,

que se embaraçam nos fios,

e se revelam aos poucos, num jogo de luz e sombra


Chega mais, muito bom dia!
 
Vê se me esquece, babaca!
 
Gente se encontra na esquina.


Poesia produzida a partir de disparador do grupo Escrita Matinal (@escritamatinal)
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Na Rede: referências musicais

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Noélia

Noélia caminha pela areia sem atenção, tropeça nos pés descalços, a barra do vestido lambendo os morrotes fofos. No ambiente, nada a atrai – movimentos, cores, sons – nada! Olha para si mesma, corpo em concha, o mundo interior em preto e branco. Lá fora o mar tranquilo; por dentro, ondas de ressaca. Pudera! Não anunciaram que o tempo mudaria por estes dias? Forte calor, frente fria... 

Tinha acabado de constatar, um pouco antes de bater a porta da casa e sair atordoada, que o amor detesta mudanças, que ele só se sente bem com temperaturas constantes, em condições ideais de umidade, na mais completa calmaria. Raios e temporais?! Malditos sejam, esconjura o amor. Malditos sejam, repete a mulher, a voz vibrando dentro da própria concha. Um amor abalado cisma em morrer, morte súbita. Resta espanto, e agonia.

Noélia está só; a praia vazia, olhada de soslaio, confirma a sensação. Melhor assim... De que adiantaria um ser vivente ao seu lado se é impossível partilhar o incomunicável? Não basta soletrar “dê-ó-erre” com toda a minúcia ortográfica, ou dividir as sílabas de “so-frri-menn-to” reforçando as ênfases individuais. Palavras não bastam diante da morte do amor. Por isso, se cala - estática, estátua.

Se ela movesse um pouco o corpo, se erguesse a cabeça na direção do horizonte, veria um pássaro se aproximar: voo elegante no céu, asas e vento em parceria, a cauda-leme apontada para o único lugar habitado na areia. Se pelo menos abrisse os olhos, se permitisse que a luz inundasse as suas retinas, experimentaria um momento fugaz de comunhão. Mulher e pássaro unidos na sombra projetada a sua frente: o corpo dela, esteio; nas asas dele, anseios. Mas Noélia amarra-se em si, cobre o rosto com as mãos, não se entrega à luz. O pássaro, indiferente aos limites da mulher, segue livre o seu destino.
Conto Noélia nascido do trabalho com o grupo Escrita Matinal. Texto inaugural da promessa de 2024.
Imagens: @oszvaldnoell