domingo, 23 de março de 2025

Circo Estelar

    A temporada foi um desastre! Na plateia, meia dúzia de filhos de Deus; no caixa, uns caraminguás que não cobririam nem o deslocamento para aqueles confins de Minas Gerais. Eu reconheci na cara esbranquiçada de Lord Orion a preocupação com os destinos do show, já a tinha visto antes. Aliás, ultimamente ele tem precisado de muita maquiagem para disfarçar a palidez, e doses de conhaque ao encarar as contas. A cartola e a varinha não lhe têm sido úteis.
    
    Embora ninguém esteja animado com a situação, não damos o braço a torcer. A esperança costuma se renovar ao longo de cada viagem, para a próxima cidade, e a seguinte. Partiremos daqui a pouco com destino ao vilarejo de Vale Alegre. O nome, com certeza, há de nos trazer sorte: as cadeiras estarão lotadas, e os nossos bolsos também. “Amém”, parece completar Andrômeda, depois de se benzer com leveza de gestos, e beleza das mãos. Andrô é meu amor platônico, a deusa bailarina que completa o meu interior. Sem ela não vou nem até a esquina! Quem sabe um dia me declaro?

    Eu estou acomodado na carroceria do caminhão maior. Pólux e Castor são os encarregados de dobrar as minhas vestes, de organizar a minha estrutura de modo que sobre espaço para as caixas da companhia: roupas, cenários, equipamentos, utensílios e víveres. Lorde Orion diz que os irmãos acrobatas fazem o serviço com organização e rapidez, mas vez por outra ele cede às reclamações dos dois e preciso conviver com Sirius e sua má vontade para o trabalho. Nunca se viu um engolidor de espadas mais arrogante e preguiçoso. Além de ser um péssimo motorista.

    No caminhão menor, segue o restante da trupe. Na boleia, Lord Orion, Andrômeda e Pégaso - pela baixa estatura, o palhaço não consegue se equilibrar no chacoalhar da carroceria. Atrás, protegidos por uma lona bege, e mal acomodados nos bancos de madeira, viajam Antares e seus sete instrumentos, as barracas do acampamento, e Vega, um jovem fugido de casa que se juntou a nós quando perambulávamos pelo Nordeste.

    A caravana avança, Vale Alegre se aproxima, posso ver da minha posição privilegiada. O letreiro com letras garrafais instalado na frente do caminhão maior e a buzina, insistentemente tocada por Lord Orion, chamam a atenção do povo nas ruas. As pessoas param, acenam. Chegamos à praça central. Me animo pelas condições do lugar, espaço fabuloso, bem no meio do ir e vir da cidadezinha. Todos descem, e a alegria dura pouco. Ouço Andrô comentar que o dono da mercearia em frente não quer baderna ali. “Baderna?! Ôxe! Que cabra abestado”, grita Vega. Confusão formada, nos empurram para um terreno lá no final do comércio, depois das moradias. O lugar é até agradável, eu vejo. Tem uma matinha do lado esquerdo com patas-de-vaca floridas; a área aberta é gramada; do lado direito cruza um riacho, facilitando a vida do acampamento. Mas, e ao fundo? Estico minhas hastes para identificar melhor a parte de trás do terreno. Custo a acreditar no que vejo. Não sou o único a perceber nosso infortúnio. Com passadas curtas, Pégaso chega esbaforido da sua excursão. Dá a notícia aos berros: “Estamos cercados por defuntos!”.

    “De-de-funtos?!”, gagueja Lord Orion, buscando o conhaque na bolsa de viagem. Além da máscara branca, o corpo confirma o baque. Está curvado, mãos apoiadas nos joelhos, a garrafa largada aos seus pés. Andrômeda corre a confortá-lo: “Mortos não se importam com a música alta, nem com gritos da plateia! Vai ser até bom, viu?”. Sirius reage aos argumentos femininos e recruta os colegas para uma expedição de reconhecimento; Pégaso, ressabiado, indica o caminho. Eu fico esquecido, dobrado, imóvel na carroceria, as hastes no máximo da capacidade de observação. Aguardo o retorno da trupe.

    Na volta, a conversa em torno do caminhão me põe a par dos fatos. Sim, há um cemitério nos fundos daquela área; o lugar parece bem cuidado – mato capinado, grades de ferro e portão em perfeito estado. Mas é Pólux que mais se sente incomodado com um fato estranho: as lápides das sepulturas estão simplesmente apagadas, nenhuma marca antiga ou indício de que tenham, um dia, existido. Uma sensação de ameaça vai nos contaminando pouco a pouco. Onde andarão estas almas? Sem um endereço determinado, um nome incrustado na pedra, se sentiriam à vontade para vaguear por aí? Viriam em nossa direção? Ou pior: assustariam o nosso público?

    As perguntas circulam no ar acompanhando a roda de conversa e ninguém se dá conta de uma figura que se aproxima. “Nunca tivemos um circo por aqui”, diz a mulher, entre aborrecida e aflita, ao ler a placa de divulgação. Pelos buracos da minha lona, consigo ver, de costas, uma senhora em carne e osso, não me parece assombração. Antares se aproxima da visitante, leva a flauta em uma das mãos. Apresenta a trupe, suas habilidades fantásticas, fala sobre o espetáculo jamais visto em toda a Terra. Aproveita o momento de conversação para chegar bem perto e investigar-lhe o rosto. Percebe os olhos avermelhados, e brilhantes da senhora. Um tremor percorre o corpo do músico. Ele empunha a flauta e começa a tocar uma melodia aprendida há milhares de anos. O efeito é imediato, não em mim, é claro. Andrômeda e a mulher se movimentam lentamente; braços seguindo o alongado das notas sopradas por Antares. Em seguida, Pégaso, Pólux e Castor fazem corrupios em torno de si, cabeças balançando a cada trinado mais agudo. Vega e Lord Orion dão-se as mãos, rodopiam e cantam largas vogais: aaaaaá, oo oo, oooó. E Sirius encolhe-se como se estivesse em um casulo, oscilando ao sabor de uma brisa mansa. A cena é bonita de ver. Quisera eu poder acompanhá-los neste transe musical.

    Mas é justamente pelo meu estado de consciência que consigo reparar nos vultos atraídos pelo flautista. Saindo da matinha de patas-de-vaca, das margens do riacho, chegam jovens, velhos, meninos e meninas, homens e mulheres, dançando coreografias inventadas. Aos poucos se juntam a Antares e ao corpo de baile original. “Viemos parar em Hamelin?”, me pergunto. Os olhos avermelhados e brilhantes da gente que chega me dizem que não.

    Sinto uma aragem a propagar-se pelo descampado, um bailado ascendendo por trapézios transparentes. O ar ondulante atinge minhas vestes, desdobrando-as uma a uma. Flutuo. E pairo colorido sobre o gramado, acima das cabeças dos dançarinos. Ali, num tempo guiado pela música, seres sem passado se unem aos que não querem ser esquecidos.

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  • Texto produzido e revisado no Grupo de Escrita, do curso de Formação de Escritorescoordenado por Bruna Tessuto. O desafio foi construir uma história a partir de três imagens bem díspares: uma lápide sem inscrições, uma senhora e um mágico. Quando li a proposta, pensei: "Que coisa mais sem noção!" Depois que escolhi o narrador,  a tarefa fez mais sentido. Encarei, e gostei de elaborar esse conto inspirado na fantasia dos espetáculos circenses.