segunda-feira, 7 de abril de 2025

Quanto vale o fim de um amor?

Durval empurra a porta de vai-e-vem da cozinha e grita:

- Batista, suspende o fechamento do turno. Chegou um casal e parece que vai jantar!

O cozinheiro está à beira da bancada, um pano encardido pendurado no ombro, panelas espalhavam-se pelo mármore gasto. Com a notícia, deixa escapar das mãos a concha de molho de tomate. A concha repica no chão e quase derruba o balde que apara o vazamento debaixo da pia.

- A essa hora? Sem condições! Não sou escravo do patrão, não – reclama, recolhendo o objeto.

- Também quero ir embora. Passei o dia todo andando de lá pra cá, e só consegui juntar uma merreca de gorjeta. O dia tá fraco!

- E você quer encompridar um dia fraco, Durval? Ficou lelé da cuca! – resmunga sem levantar os olhos e já lavando as travessas.

- É que o casal é distinto, principalmente o homem, com um casaco preto nos trinques. Vi quando chegou. Ah, se eu tivesse um casaco daqueles, Batista! Sabe a Soninha, aquela branquinha e bunduda que vive rondando os fundos do restaurante? Pois ela anda me esnobando, dizendo que eu sou mal ajambrado. Se eu vestisse um casaco daqueles, ia dar uma coça naquela danada.

- Coça? Ah, entendi... – sorri com o canto dos lábios. – Só não sei como é que eu entro nesta história de casaco e Soninha. Você vai roubar o homem enquanto ele janta distraído com a mulher?

- Claro que não, não tenho vocação para bandido! Mas uma pila graúda, acho que eu consigo arrancar. Crio uma dificuldade pra vender caro uma facilidade. É assim que faz todo mundo que se dá bem.

- A dificuldade você já tem, hoje eu não cozinho nem mais um pinto.

- Fechado, Batista. Você não tem que mover uma palha e eu me dou bem com o cavalheiro. Me passa a cesta de pão e dois copos. Copos limpos, viu. E pães pelo menos mornos. Se o serviço for de merda, babau tutu.

Durval volta para o salão. Em cima do balcão do bar pega uma garrafa; na falta de bandeja, equilibra o vinho embaixo do braço. A cestinha e os copos seguem nas mãos, entre os dedos e um guardanapo. Dirige-se à mesa encostada ao muro e quase às escuras. Sem pressa, aproxima-se do casal: “Acho que a cozinha já está fechada, cavalheiro. Queriam jantar?”

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- Batista, eu sou um gênio; você é um gênio! – entra na cozinha às gargalhadas. - Foi moleza trazer uma notinha direto para o meu bolso. Cheguei logo com o lero-lero:” já está tarde, senhor; deve estar fechada, senhor...;” insinuando que sempre se dá um jeitinho. E o homem parece que quer terminar logo este encontro: se sacode o tempo todo na cadeira, não sabe se pega o isqueiro, se larga o maço de cigarros. Senti até uma pontinha de pena.

- Pena, Durval? Cascata. Agora mesmo estava querendo roubar o casaco do homem.

- O que é isso, meu chapa? Sou honrado, só quero um din-din pra comprar uma roupa elegante e ficar boa pinta. Eu te falei, a Soninha...

- Sei, a Soninha... – abandona a esponja na pia, pega a escova de arame e ataca a panela maior, grudada com molho de carne. As travessas estão lavadas e emborcadas no escorredor.

- Sabe o que eu ouvi quando estava chegando na mesa: “Que juízo você faz de mim, Alice? Eu te amei.” – arremeda a voz do homem. Te amei, entendeu? No passado. E a mulher lá, com cara de coitada, fazendo um drama pra ver se o infeliz ama de volta.

- Nos meus tempos de garçom, cansei de ver a cena. Daqui a pouco ela chora, diz que foi enganada, que ele não pode ir embora assim - abre a torneira ao máximo, posicionando o panelão embaixo da ducha forte.

- Neste caso de hoje, tem mais um probleminha... – fala em tom de segredo, aproximando as mãos em concha do ouvido de Batista.

- Desembucha logo, Durval, ou te ponho para limpar o chão.

- A mulher é coroa, daquelas que querem parecer mais novas, sabe? E deve ser barraqueira. Pegou logo a garrafa de vinho, disse que queria beber; pelo olhar assustado do homem, já deve ter dado vexame.

- E eu não sei? Mas não entendo bulhufas destas mulheres; se metem com homem mais novo, com idade pra ser filho delas, e depois querem fidelidade eterna. Piada. Nem se a dona for rica, cheia do ouro! A falta de carne nova e durinha fala mais alto – abre e fecha os dedos no ar como se apalpasse uma peça de alcatra do cardápio.

- Tá certo, Batista, certíssimo! É por isso que eu acho que um coroa namorar uma menininha dá muito mais jogo; se o homem for rico, então, perfeito. As mulheres se contentam com umas migalhas de amor e uns presentes caros, nem fazem tanta questão de sexo.

- Já nós, meu camarada, damos no couro até os noventa!

- Ainda estou longe desta idade, mas chego lá. Enquanto espero vou dar uma circulada no salão - ri da própria piada - Se o homem não me vir por lá, é capaz de chamar o gerente. Não divido com ninguém os meus cinquenta cruzeiros!
                                                                                                        
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- Batista, hoje é nosso dia de sorte! Mais sorte que a da seleção tricampeã. Quer saber pra onde o casal está indo? Vem, é só chegar aqui – pega o cozinheiro pelo braço e o dirige à janela da cozinha.

- Durval, não sou fofoqueiro, não – estica o pescoço na direção indicada, alcançando com a vista a nesga de jardim e a fonte seca no centro dele.

- Eu fingi que estava atendendo outras mesas – sussurra o garçom ao lado da janela - passei bem longe deles pra não ter que dar nenhuma explicação. O homem parecia tão chateado que convidou a mulher para dar uma volta. Vieram nesta direção.

- Dá pra ver direitinho. Bem que você disse que Alice era coroa... Ah, meu Deus, agora já era. Não abraça ela, meu senhor. A mulher vai entender tudo errado!

- Fala baixo, Batista, não vai estragar o nosso camarote. Olha só, agora deu a doida. Tá beijando ele todo, e de língua.

- Eu avisei, eu disse. Se não fosse essa música alta, dava até pra ouvir a conversa.

- Eu te amo, eu te amo – Durval representa, olhando para Batista, que gosta da brincadeira:

- Me larga, Alice! Acabou! – responde Batista, sacodindo o colega e sem consegui conter a risada.

- Espera, que pena, acabou o showzinho, estão voltando pra mesa. Vou ter que aparecer por lá.

- E qual vai ser a sua desculpa pro jantar não ter saído?

- Fácil! Que o cozinheiro está de ovo virado – responde enquanto empurra a porta para o salão com força.

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- Batista, fecha a cozinha, finalmente vamos embora.

- E você só me aparece agora que já está tudo limpo e arrumado? Tá me devendo, ouviu?

- Devo e não nego, mas pago nesse instantinho mesmo. Quer saber como terminou a historinha de amor?

- Não sou fofoqueiro, eu disse. Vai, me conta, já esperei tanto!

- O homem chama Eduardo, vi no cheque com que pagou o vinho; ele deu no pé, escafedeu-se, largou a mulher na mesa.

- Dá-lhe, Eduardo! Assim é que se faz.

- Encontrei com ele em frente ao bar, acertou as contas e pediu pra eu arranjar um taxi pra mulher. “Claro, claro!,” - fiz uma reverência respeitosa.

- Quanto cinismo.

- Depois segui em direção a Alice na mesa, ela com a maior cara de choro. Perguntei, jogando um verde: “A madama está se sentindo mal?”

- E ela?

- Disse que tinha sido uma discussão, mas que estava bem. Só de sacanagem, falei :“Também discuto com a minha velha, mas mãe tem sempre razão”. Mãe, manjou, Batista?

- Que maldade, Durval! Ela ficou grilada? – pergunta enquanto fecha os armários e pega a mochila.

- Não, até me elogiou, disse que eu era um moço muito bom, acredita? E se foi a pé mesmo, não quis táxi nem nada!

- Apaga a luz aí perto de você, Durval, por hoje chega. Até amanhã!

- Amanhã é minha folga, esqueceu? Vou comprar o meu casaco maneiro e abafar com a Soninha. Ela que me aguarde...

Durval tranca a porta da cozinha e segue Batista até o ponto do ônibus. De longe, veem a mulher descendo lentamente a rua.

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  • Texto produzido e revisado no Grupo de Escrita, do curso de Formação de Escritorescoordenado por Bruna Tessuto. O desafio foi fazer a reescrita do conto "A Ceia", de Lygia Fagundes Telles, modificando o narrador.
Na Rede:
Leia A Ceia - Alice e Eduardo encontram-se num restaurante para, mais uma vez, conversarem  sobre o término do romance que viveram durante anos.


domingo, 23 de março de 2025

Circo Estelar

    A temporada foi um desastre! Na plateia, meia dúzia de filhos de Deus; no caixa, uns caraminguás que não cobririam nem o deslocamento para aqueles confins de Minas Gerais. Eu reconheci na cara esbranquiçada de Lord Orion a preocupação com os destinos do show, já a tinha visto antes. Aliás, ultimamente ele tem precisado de muita maquiagem para disfarçar a palidez, e doses de conhaque ao encarar as contas. A cartola e a varinha não lhe têm sido úteis.
    
    Embora ninguém esteja animado com a situação, não damos o braço a torcer. A esperança costuma se renovar ao longo de cada viagem, para a próxima cidade, e a seguinte. Partiremos daqui a pouco com destino ao vilarejo de Vale Alegre. O nome, com certeza, há de nos trazer sorte: as cadeiras estarão lotadas, e os nossos bolsos também. “Amém”, parece completar Andrômeda, depois de se benzer com leveza de gestos, e beleza das mãos. Andrô é meu amor platônico, a deusa bailarina que completa o meu interior. Sem ela não vou nem até a esquina! Quem sabe um dia me declaro?

    Eu estou acomodado na carroceria do caminhão maior. Pólux e Castor são os encarregados de dobrar as minhas vestes, de organizar a minha estrutura de modo que sobre espaço para as caixas da companhia: roupas, cenários, equipamentos, utensílios e víveres. Lorde Orion diz que os irmãos acrobatas fazem o serviço com organização e rapidez, mas vez por outra ele cede às reclamações dos dois e preciso conviver com Sirius e sua má vontade para o trabalho. Nunca se viu um engolidor de espadas mais arrogante e preguiçoso. Além de ser um péssimo motorista.

    No caminhão menor, segue o restante da trupe. Na boleia, Lord Orion, Andrômeda e Pégaso - pela baixa estatura, o palhaço não consegue se equilibrar no chacoalhar da carroceria. Atrás, protegidos por uma lona bege, e mal acomodados nos bancos de madeira, viajam Antares e seus sete instrumentos, as barracas do acampamento, e Vega, um jovem fugido de casa que se juntou a nós quando perambulávamos pelo Nordeste.

    A caravana avança, Vale Alegre se aproxima, posso ver da minha posição privilegiada. O letreiro com letras garrafais instalado na frente do caminhão maior e a buzina, insistentemente tocada por Lord Orion, chamam a atenção do povo nas ruas. As pessoas param, acenam. Chegamos à praça central. Me animo pelas condições do lugar, espaço fabuloso, bem no meio do ir e vir da cidadezinha. Todos descem, e a alegria dura pouco. Ouço Andrô comentar que o dono da mercearia em frente não quer baderna ali. “Baderna?! Ôxe! Que cabra abestado”, grita Vega. Confusão formada, nos empurram para um terreno lá no final do comércio, depois das moradias. O lugar é até agradável, eu vejo. Tem uma matinha do lado esquerdo com patas-de-vaca floridas; a área aberta é gramada; do lado direito cruza um riacho, facilitando a vida do acampamento. Mas, e ao fundo? Estico minhas hastes para identificar melhor a parte de trás do terreno. Custo a acreditar no que vejo. Não sou o único a perceber nosso infortúnio. Com passadas curtas, Pégaso chega esbaforido da sua excursão. Dá a notícia aos berros: “Estamos cercados por defuntos!”.

    “De-de-funtos?!”, gagueja Lord Orion, buscando o conhaque na bolsa de viagem. Além da máscara branca, o corpo confirma o baque. Está curvado, mãos apoiadas nos joelhos, a garrafa largada aos seus pés. Andrômeda corre a confortá-lo: “Mortos não se importam com a música alta, nem com gritos da plateia! Vai ser até bom, viu?”. Sirius reage aos argumentos femininos e recruta os colegas para uma expedição de reconhecimento; Pégaso, ressabiado, indica o caminho. Eu fico esquecido, dobrado, imóvel na carroceria, as hastes no máximo da capacidade de observação. Aguardo o retorno da trupe.

    Na volta, a conversa em torno do caminhão me põe a par dos fatos. Sim, há um cemitério nos fundos daquela área; o lugar parece bem cuidado – mato capinado, grades de ferro e portão em perfeito estado. Mas é Pólux que mais se sente incomodado com um fato estranho: as lápides das sepulturas estão simplesmente apagadas, nenhuma marca antiga ou indício de que tenham, um dia, existido. Uma sensação de ameaça vai nos contaminando pouco a pouco. Onde andarão estas almas? Sem um endereço determinado, um nome incrustado na pedra, se sentiriam à vontade para vaguear por aí? Viriam em nossa direção? Ou pior: assustariam o nosso público?

    As perguntas circulam no ar acompanhando a roda de conversa e ninguém se dá conta de uma figura que se aproxima. “Nunca tivemos um circo por aqui”, diz a mulher, entre aborrecida e aflita, ao ler a placa de divulgação. Pelos buracos da minha lona, consigo ver, de costas, uma senhora em carne e osso, não me parece assombração. Antares se aproxima da visitante, leva a flauta em uma das mãos. Apresenta a trupe, suas habilidades fantásticas, fala sobre o espetáculo jamais visto em toda a Terra. Aproveita o momento de conversação para chegar bem perto e investigar-lhe o rosto. Percebe os olhos avermelhados, e brilhantes da senhora. Um tremor percorre o corpo do músico. Ele empunha a flauta e começa a tocar uma melodia aprendida há milhares de anos. O efeito é imediato, não em mim, é claro. Andrômeda e a mulher se movimentam lentamente; braços seguindo o alongado das notas sopradas por Antares. Em seguida, Pégaso, Pólux e Castor fazem corrupios em torno de si, cabeças balançando a cada trinado mais agudo. Vega e Lord Orion dão-se as mãos, rodopiam e cantam largas vogais: aaaaaá, oo oo, oooó. E Sirius encolhe-se como se estivesse em um casulo, oscilando ao sabor de uma brisa mansa. A cena é bonita de ver. Quisera eu poder acompanhá-los neste transe musical.

    Mas é justamente pelo meu estado de consciência que consigo reparar nos vultos atraídos pelo flautista. Saindo da matinha de patas-de-vaca, das margens do riacho, chegam jovens, velhos, meninos e meninas, homens e mulheres, dançando coreografias inventadas. Aos poucos se juntam a Antares e ao corpo de baile original. “Viemos parar em Hamelin?”, me pergunto. Os olhos avermelhados e brilhantes da gente que chega me dizem que não.

    Sinto uma aragem a propagar-se pelo descampado, um bailado ascendendo por trapézios transparentes. O ar ondulante atinge minhas vestes, desdobrando-as uma a uma. Flutuo. E pairo colorido sobre o gramado, acima das cabeças dos dançarinos. Ali, num tempo guiado pela música, seres sem passado se unem aos que não querem ser esquecidos.

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  • Texto produzido e revisado no Grupo de Escrita, do curso de Formação de Escritorescoordenado por Bruna Tessuto. O desafio foi construir uma história a partir de três imagens bem díspares: uma lápide sem inscrições, uma senhora e um mágico. Quando li a proposta, pensei: "Que coisa mais sem noção!" Depois que escolhi o narrador,  a tarefa fez mais sentido. Encarei, e gostei de elaborar esse conto inspirado na fantasia dos espetáculos circenses.