Já são quase dez da noite quando Carla senta-se em frente ao computador para mais horas de trabalho. A rotina sempre apertada - atividades na agência de publicidade, cuidados na educação dos filhos – e agora os prazeres e pressões com os prêmios e recordes de vendagem, vão empurrando o ofício da escrita para cada vez mais tarde. Não chega a ser um problema para uma workaholic assumida, embora, às vezes, uma pontinha de cansaço, um incômodo nos ombros a façam desejar que, em vez de um rio caudaloso, sua vida seja um lago de águas tranquilas, onde possa soltar o corpo e deixar-se simplesmente boiar.
Abre o arquivo do capítulo mais recente. A narrativa em construção a instiga; para ela escrever é expressar-se em liberdade, é tornar-se amiga, aliada das palavras. Carla interrompe a escrita justamente onde uma palavra lhe escapa. Sabe que é preciso ter paciência com os sentidos, persistir nas possibilidades, até que uma ideia se instale, soberana. Como ela se instalou, há anos, neste escritório no andar térreo de sua casa em Belo Horizonte – espaço de trabalho e criação, só dela, sem que ninguém a incomode. Pelo menos, não até esta noite calorenta de inverno, imensas janelas abertas descortinando o jardim. O som de folhas secas pisadas, uma melodia suave de ninar, a voz afinada de uma mulher, vão ocupando devagar o recinto. Carla fica de pé, estica o pescoço; um vulto aparece por detrás do ipê roxo em flor no canto do terreno. Enquanto a figura se aproxima, pisando a grama recém aparada, Carla dirige-se à janela, tentando reconhecê-la: talvez pela postura esguia, ou pelo pisar decidido. Quem sabe chegando mais perto, possa lhe ver a face em detalhes. Não demora, estão frente a frente:
- Sim, sou eu, Carla.
Dalva não espera convite e adentra o escritório.
- Por um momento, duvidei. Seus cabelos grisalhos, um pouco mais lisos... Mas os olhos, os olhos de jaboticaba, molhados e grandes como eu descrevi, me levaram a você.
- Envelheci, continuei meu caminho. Deus voltou para mim, como você anunciou ao colocar o ponto final do romance, mas ainda tenho tantas dúvidas. Eu não me conformo. Eu preciso que você me diga por quê?
- Por que você escolheu a mim para tanto sofrimento? Por que me envolveu em uma paixão sem tamanho e me desamparou diante da dor?
- Era o seu destino. Filha de Antônio e Aurora, cercada de amor, e música, só você teria a chance de ressignificar o ciúme, o mal, a violência...
- Destino, não, sina! Queria que você soubesse disto. Olhe, num capítulo, num só capítulo, você me levou do casamento, de um gostar de muitos verbos, a uma dor desumana de perder tudo: meu homem, meu filho, minha fé!
- Tudo lhe foi devolvido, Dalva, embora entenda a sua revolta. Escritores não são confiáveis.
- Ardilosa, é o nome que me vem à cabeça agora para defini-la. Tudo tão encadeado, os fatos arrumadinhos para aquele final. Sabe os desatinos que andam falando sobre mim quando a leitura acaba? Eu preferia que você tivesse me matado.
- Não sei se te consola, também escuto críticas, algumas são tão... tão...
- Tão injustas! Tão cruéis! Será que quem lê não percebe que somos falíveis: você, eu; todas as personagens e seus criadores, todos somos frutos da mesma humanidade.
- Quem vê de fora sempre acha que faria arranjos melhores, mas é de dentro que o não dar conta ocupa tudo - recita Carla - pensei que eu tinha sido clara quando escrevi esta frase.
- Se você tivesse permitido, eu poderia ter ido embora, mas fiquei sentenciada a uma eterna avaliação. E agora, para piorar a minha situação, ainda teve esse prêmio em Portugal. Soube ontem da novidade num clube do livro. Precisei comparecer porque meu nome foi muito pronunciado. Era Dalva isso, Dalva aquilo... Culpa sua, de raiva nem lhe trouxe o tabuleiro com empadas que tinha acabado de assar.
- O que acontece depois da última página não me cabe definir, Dalva. Deixei o caminho aberto para você e Venâncio. Você, ele, seus filhos pertencem agora aos leitores - à imaginação deles, aos desejos e limitações de cada um deles. Por isso, os destinos são, serão indefinidamente múltiplos. Agarre-se às pessoas que se emocionaram, se identificaram com as tramas de vocês, estas são muitas; deixe de lado os autoritários, os conservadores.
- É tão difícil, não sei se consigo...
- Vamos tentando, Dalva, vamos tentando. Mas agora sente-se aqui e me conte as novidades. Você e Venâncio se acertaram? Como está o Vicente? Apegou-se ao pai depois de tanto tempo de separação? E o João, conseguiu compreender por que tem duas mães?
E as duas conversam até de manhazinha, esclarecendo os fatos, aparando as arestas, trocando confidências. Carla registra na memória e no coração o rumo daquela prosa: adubo para novas histórias, fermento para outras personagens. Escritores não são mesmo confiáveis.
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- Texto produzido e revisado no Grupo de Escrita, do curso de Formação de Escritores, coordenado por Bruna Tessuto.