Hora da partida. A voz do encarregado inicia a leitura dos nomes: “Valentino Lazzari, Maria Lazzari, Giovanni Corriolo” - a lista é longa, um a um os personagens vão subindo as escadas que dão acesso ao convés – “Rosa Tomaso, Francesco Ferrara...” O homem dirige-se ao encarregado para corrigi-lo: “Francesco Ignácio Ferrara, senhor”. Em seguida, reúne os dois sacos de aniagem com as tralhas que lhe restaram e segue a fila dos desvalidos. A cada degrau, despe-se das suas origens como se fossem roupas surradas, cava a memória com enxada larga, até que, ao adentrar o navio, só lhe reste um buraco oco, embora não haja muito o que esquecer. Vida difícil em sua terra natal: pobreza, doença, guerra e morte. Logo que se estabelecesse na propriedade prometida, mandaria buscar pai, mãe, irmãos. Foi pela família que se dispusera a enfrentar a incerteza da longa viagem, talvez o ano virasse antes que alcançasse o seu destino. Mas quem o olha ali, encostado à amurada, cabeça e costas eretas, não desconfia da sua ansiedade.
Durante toda a travessia, Francesco quase não fala. Concentra-se no que está por vir. Em vez do mar infindo, antevê a terra que receberá a força do seu trabalho. Aceita a ração reduzida de comida e água como condição de penitência e redenção. Ignora as náuseas do balanço das ondas, mas guarda o som daquele ir e vir, um farfalhar esperançoso a lhe dizer que tudo será novo, de novo. Há, contudo, o cheiro da maresia, maresia que não se curva aos devaneios de Francesco: o odor ácido o incomoda nas ventas, faz arder seus olhos e fere a imaginação. Só mesmo o final da viagem é capaz de lhe sossegar os sentidos. Ao desembarcar no porto, construção hospitaleira entre pedras banhadas de sol, sente-se, enfim, no tão ansiado refúgio. Umedece as pontas dos dedos na água salgada e batiza-se: “Francesco Imigrante Ferrara, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”.
Amanhece. Nídia Martinez toma a filha pela mão, fecha a porta da casa simples, cruza a rua apressada sem nem olhar para trás. Não há muito do que se despedir desde que a violência se instalou por toda a vizinhança. Gangues, traficantes, sequestros, assassinatos: palavras e sentidos dos quais foge, dos quais quer a filha proteger. Levam duas mochilas de lona com o indispensável para cruzar, a pé, centenas de quilômetros até a fronteira de Shangri-lá - o lugar onde serão plenamente felizes, como naquele filme que Nídia assistiu há tempos.
Pelo caminho, outras famílias vão se juntando à grande marcha dos desvalidos. Impossível contar adultos, crianças, saber seus nomes, organizá-los. A massa compacta segue, dia após dia em direção ao norte, comida e água racionadas. Nídia não esmorece, quem a olha à frente da caravana, passos firmes, postura altiva, não avalia a sua agonia. O sonho é ferramenta de resistência. Sonhos que compartilha com a filha: castelos são refúgios; pessoas gentis, fadas madrinhas do esperado recomeço. Há, contudo, a realidade da travessia, realidade que não se curva aos devaneios de Nídia: calor inclemente, cansaço, fraqueza, e a indiferença dos que assistem a passagem da multidão. Ela remenda as vísceras, põe o coração em standby, e avança para, logo à frente, descobrir que nem mesmo o final da viagem é capaz de lhe sossegar o corpo. Lá está Shangri-lá, cercada. E não se vê porta, passagem, uma mísera abertura. Nídia leva a filha pela mão, aproxima-se da barreira intransponível, ajoelha-se e, atordoada, pergunta-se: “Nídia Refugiada Martinez, e agora?”
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O último desafio da Oficina Online Escrevendo Crônicas, coordenada por Rubem Penz, foi produzir uma crônica em prosa-poética sobre Refugiados.
A proposta me fez recordar esta gravura de Lasar Segall que me impactou durante visita ao Museu do artista em São Paulo: “Emigrante debruçado na amurada”, de 1929. Com economia de traços e cores, Segall comunicou muitos sentimentos: desamparo, desespero, solidão, amargura. Essas emoções me inspiraram a escrita e acabaram por se revelar, e se atualizar, em Francesco e Nídia, personagens que, a seu modo e em seu tempo, fazem as inevitáveis travessias.